
Guilherme Moraes
Devido à greve dos atores e roteiristas, e da tentativa do estúdio de levar para o IMAX, Mickey 17 mudou a data de estreia várias vezes, inicialmente planejado para Janeiro, depois mudando para Abril e sendo lançado, antecipadamente, em Março. O longa finalmente chegou às telonas como o primeiro filme de Bong Joon-Ho após a histórica vitória de Parasita no Oscar de 2020. Assim como seu antecessor, o coreano manteve sua veia política, mas, desta vez, focado na eleição norte-americana entre Donald Trump e Kamala Harris. Contudo, em oposição à sua obra mais celebrada, este não consegue criticar o capitalismo de maneira produtiva, além de não sustentar a diversidade de temas, principalmente pela sua abordagem.
Mickey (Robert Pattinson) é um ‘descartável’, ou seja, uma pessoa que pode morrer, pois será reimpresso no dia seguinte com todas as suas lembranças de outras vidas. Nesse sentido, a companhia para a qual ele trabalha o utiliza para experimentos e atividades perigosas que podem culminar em morte, o que normalmente acontece pela natureza da relação de Mickey com a empresa.
O personagem de Robert Pattinson ilustra a relação do empregado com o empregador, uma representação do sistema capitalista com a classe trabalhadora. Todo o conceito de descartabilidade funciona muito bem, são críticas bem diretas e bem pontuadas. Inicialmente, o diretor lida muito bem com o tempo e a estrutura da narrativa para fortificar seus pontos, partindo para uma humanização de um personagem excêntrico, desde os seus sentimentos em relação às pessoas e o mundo, até os conflitos que ele tem na Terra, como dívidas com agiotas. Aliás, foram os débitos que levaram Mickey a virar um ‘descartável’. Bong Joon-Ho é muito certeiro ao colocar a violência das cidades urbanas como motivação para se submeter a um processo que a torna um objeto, uma ‘não pessoa’. O protagonista se vê encurralado diante do mundo contemporâneo.

Todavia, o longa funciona até o momento em que o Mickey 17 se encontra com o seu ‘sucessor’. A partir daí vira uma bagunça e se perde ao abraçar diversas temáticas e tomar diferentes direções narrativas que nunca se desenvolvem, de fato. Ascensão da extrema direita, questões ambientais, abuso nas relações e a vida dentro do ambiente de trabalho; são muitas proposições que, apesar de cercarem o mesmo objeto – capitalismo –, dificilmente encontram um caminho em comum para a história.
Mickey 17 não é só enxuto, mas também não confia em seu espectador, ao ponto em que, por vezes, precisa jogar na cara o que está tentando propor. Em dado momento, no jantar entre Mickey, Kenneth (Mark Ruffalo) e Ylfa (Toni Collette), Bong Joon-Ho e Darius Khondji (diretor de Fotografia) dão um close em uma insígnia que remete a uma suástica. Ou seja, não existe crença de que o público irá entender de que se trata de uma paródia à extrema direita, mesmo que os personagens sejam óbvios.
É preciso destrinchar ao máximo sobre a profusão de temas, visto que, ela em si não é o problema, porém, gera consequências que atrapalham a experiência fílmica. The Shrouds (2024), por exemplo, tem assuntos em abundância. Entretanto, a abordagem mais desafetada e, definitivamente, cínica e irônica, dão sentido a essa ‘pegada’ nonsense. David Cronenberg se apresenta mais seguro sobre o que quer e como fazer. O caso do sul-coreano é diferente. Ao mesmo tempo que o filme fica ‘dando a pinta’ de ser mais inteligente do que realmente é – de forma parecida com Não Olhe para Cima (2021) –, ele também aparenta estar menos certo sobre os caminhos que toma, ficando entre a caricatura, a seriedade e a comicidade, o que até dá uma dinâmica, mas nunca consegue se definir.

O lado mais burlesco fica por conta do Mark Ruffalo, muito parecido com o papel dele em Pobres Criaturas (2023), em uma tentativa de emular Donald Trump. A mera presença do antagonista em cena já a torna menos interessante, por ser óbvio, feio e raso em suas intenções e críticas. Toni Collette acompanha o ritmo de Ruffalo, sendo o total o oposto de seu papel em Jurado N°2 (2024). Esse lado da obra não casa com as construções visuais mais desgastadas, sérias e frias dos ambientes que Mickey frequenta. É como se fossem dois filmes distintos que, por vezes, se chocam e destes embates surgem comentários ‘mastigados’ para o público entender.
Ademais, existem complicações em relação a estrutura. Devido aos diversos assuntos presentes, o roteiro opta por uma série de acontecimentos, com o intuito de abranger a todos. Contudo, eles não se sucedem de maneira orgânica, soa muito conveniente como certas cenas vão sendo resolvidas, além de parecer uma acomodação para deixar a narrativa fluída. Como resultado, muitas tramas são jogadas de lado, como a relação entre Mickey 17, Mickey 18, Nasha (Naomi Ackie) e Kai (Anamaria Vartolomei), ou a questão de Timo e o personagem principal com o agiota.
O lado positivo fica por conta de Robert Pattinson que, mais uma vez, entrega uma atuação muito boa desempenhando diversos papéis em um só personagem. No entanto, o foco fica entre os Mickeys 17 e 18, que apresentam duas personalidades completamente diferentes. O morcego consegue lidar com as diferentes maneiras com que o medo se externaliza em ambos. O décimo oitavo, a partir da raiva, revolta e audácia. Enquanto o protagonista se encolhe, um tipo de personagem que ‘não esbarra em ninguém’, pede perdão, não incomoda, aceita as figuras expansivas e encontra seu lugar no canto, onde ninguém o vê. O ator enxerga o potencial do discurso em si, nos conflitos consigo mesmo – sejam eles internos ou externos –, sobre a situação exploratória e deprimente em que ele se encontra.

A resolução final se dá a partir do amor, pode soar bonito, mas, na realidade, se torna condescendente com um discurso divulgado pelo cinema norte-americano a décadas. Não que isso seja um problema em si, porém, se torna contraditório, visto a intenção da fita. Se olharmos para as comédias românticas estadunidenses, normalmente todos os problemas do mundo se resolvem com amor. O ponto aqui é que, nestes universos, esta decisão é possível, é acatada, levando em conta o objetivo da obra. Parasita e Ruptura, obras críticas ao capitalismo, assim como este, também buscam o amor – não necessariamente o romântico –, contudo, eles aceitam a impossibilidade de grandes mudanças sistemáticas a partir dele e o tornam um ato de rebeldia.
Existe uma relação muito ímpar entre Mickey 17 e a segunda temporada de Ruptura. Além de serem lançadas, quase, paralelamente, as duas discutem sobre o ambiente de trabalho e a exploração. Entretanto, elas também parecem conscientes sobre a vida que é criada a partir destes lugares, ou seja, se por um lado, dentro do sistema capitalista é um local exploratório, por outro, também permite pessoas se conhecerem, formarem uma família para além do sangue e se apaixonarem. É o que acontece entre Mickey e Nasha, em contrapartida ao mundo externo cruel, sujo e solitário.
Apesar de ser um diretor de grandes obras, que vão além de Parasita, como Memórias de Um Assassino (2003) e O Hospedeiro (2006), Bong Joon-Ho decepciona em sua primeira fita após fazer história no Oscar 2020. Apesar dos ótimos atores presentes e de estar recheado de ideias interessantes, o longa se mostra frágil estruturalmente e problemático em sua concepção. Boas intenções não fazem, necessariamente, bons filmes.