Frederico Tapia e Gabriel Leite Ferreira
O século XX vai aos poucos se despedindo de nós. Depois da fundamental Beth Carvalho em abril, chegou a vez de João Gilberto deixar este mundo, no dia 6 de julho, aos 88 anos. João já não fazia shows desde 2008 e não gravava desde 2000. Seus últimos anos foram marcados por sua notória reclusão e pelas infinitas batalhas judiciais travadas entre seus herdeiros, que incluíram turnês canceladas e pedidos de interdição.
Felizmente a reputação do baiano João Gilberto como baluarte da música popular brasileira é intacta desde 1959, ano da estreia Chega de Saudade, disco que alavancou uma revolução sem precedentes no Brasil e no mundo. A mistura de samba e jazz no violão complexamente delicado, junto às interpretações igualmente delicadas, entortaram a cabeça de uma juventude que menos de uma década depois viraria a MPB do avesso com a tropicália. Sobre sua influência fora do país, vale ler este artigo da revista Época, que conta um pouco da bonita relação de João Gilberto com o Japão.
É nesse clima de tristeza e gratidão que se embala a curadoria de julho. Confiram!
Hot e Oreia – Rap de Massagem
rap
Rap de Massagem é uma das melhores estreias brasileiras dos últimos tempos. Hot e Oreia surgiram primeiro como integrantes do coletivo mineiro DV Tribo (completado por Djonga, FBC e Clara Lima), desde sempre chamando atenção por suas rimas descontraídas. No primeiro disco da dupla eles seguem por esse caminho, e tem consciência de estar em um nicho pouco habitado pelo rap nacional.
“Ei, seu rapper favorito me acha esquisito”, manda Hot na faixa “Rappers”. Considerando o visual e a postura sisudas da grande maioria dos expoentes do estilo, a dupla mineira é mesmo estranha. Os vocais estridentes e versos como “Com família não se mexe / Minha mexe tanto que fede” e “Se só pensa com o falo / é porque quer soltar o anel” destoam da agressividade do trap da Recayd Mob e do romantismo clichê de Baco Exu do Blues. “Depois de Black Alien e Speed, é só nós memo”, diz Oreia na grudenta “Estilo”, referindo-se a outra dupla de rappers que sacudiu os padrões do gênero no Brasil.
Se Hot e Oreia se consolidarão como revolucionários de uma estética única, só o tempo dirá. Por ora, é seguro dizer que Rap de Massagem é dos discos mais coesos do ano. Pra ouvir numa boa. Destaque para o clipe de “Eu Vou”, com participação de Djonga. (GF)
Lingua Ignota – Caligula
música industrial, música neoclássica
Lingua Ignota, nome artístico de Kristin Hayter, continua aprimorando em seu terceiro álbum o que já havia trazido em seus projetos anteriores. O álbum traz elementos de noise, metal extremo, darkwave e música clássica. Liricamente, ela se apropria de imagens e referências bíblicas para retratar abusos que sofreu, sua eterna dificuldade e consequências desse sofrimento. Utilizando-se de uma enorme versatilidade vocal, Hayter cria um cenário apocalíptico, e apesar de ainda ter algumas de suas influências muito visíveis, sendo Diamanda Galás a mais notável, sua escrita é extremamente comovente e as performances extremamente viscerais não deixam com que isso se torne um problema.
A sonoridade em Caligula é extremamente abrasiva, sendo por muitas vezes difícil de digerir. O álbum é denso (dura pouco mais de uma hora) e é uma experiência completamente devastadora e única. A forma com que Hayter conecta as músicas temática e liricamente, por vezes reutilizando algumas letras, reforça e induz repetidas audições para se compreender o panorama geral do álbum. No fim das contas, Caligula só fortalece a reputação de que Lingua Ignota se trata de um dos, se não o ato mais intrigante da música experimental atualmente. (FT)
Purple Mountains – Purple Mountains
indie rock, country
Onze anos separam o último trabalho do escritor e compositor David Berman e este. Conhecido como o fundador da banda Silver Jews, Berman, apesar de bem conceituado, fez poucos shows durante sua carreira, o que diminuiu suas chances de sentar ao lado do parceiro Stephen Malkmus (Pavement) no panteão dos grandes cantautores do indie rock. Agora, ele retorna em grande forma com o Purple Mountains.
Musicalmente falando, são poucas as diferenças entre Silver Jews e Purple Mountains: indie rock com nuances de country/folk rock. É nas letras que a estreia homônima guarda o seu grande trunfo. Berman acabou de terminar um casamento de 20 anos e, apesar de afirmar que ambos continuam amigos, a amargura da separação é palpável em cada faixa do disco. Some aí uma depressão crônica e um passado de abuso de substâncias, e você pode ter uma ideia da condição em que ele se encontra.
Então, o que separa Purple Mountains de outros discos de término de relacionamento como A Crow Looked at Me, de Mount Eerie, e Blood on the Tracks, de Bob Dylan? Os arranjos invariavelmente contradizem as letras, o que permite paradoxos como uma canção de nome “All My Happiness is Gone” ser um (indie) rock de arena de respeito; ou então a pungente “Darkness and Cold” ter um clipe extremamente engraçado.
A banda de apoio não reinventa roda alguma (a sensação de se estar ouvindo um álbum dos anos 70 é constante), mas diante de interpretações tão tocantes de Berman isso só aumenta o charme da obra. Afinal, é um disco sobre tempos que passaram e a paralisia diante dos tempos que vieram (vide as dolorosas “She’s Making Friends, I’m Turning Stranger” e o encerramento com “Maybe I’m The Only One For Me”). Recomendado para amantes da sofrência folk do século passado. (GF)
Boas indicações. Mas senti falta do moderno “Sua Alegria Foi Cancelada”, da Fresno, que trouxe um som maduro e de extrema tristeza e melancolia.