Gabriel Gatti
A melancolia é um estado de morbidez em que a pessoa apresenta abatimento físico e emocional. Esse sentimento tão comum é capaz de afetar qualquer pessoa independente das condições em que esta se encontra. Com o pensamento na escatologia, a trama se aproveita dessa condição emocional abstrata objetificando-a em um gigante planeta azul em rota de colisão com a Terra. A partir dessa premissa, a obra apresenta uma análise comportamental sobre duas irmãs e suas percepções com o fim da vida.
Essa aproximação entre psicologia, morbidez e arte é muito comum na cinematografia do repulsivo diretor dinamarquês Lars Von Trier, que ficou conhecido por suas polêmicas. Seus filmes costumam representar mulheres em estado de vulnerabilidade e inferioridade aos homens, sendo retratado diversas vezes de forma asquerosa o abuso e a violência contra a figura feminina.
A misoginia do diretor já rendeu muitos problemas e sérios relatos de assédio sexual. Como se não fosse o suficiente, o criador do movimento Dogma 95 já causou polêmica ao referenciar o nazismo com declarações antissemitas. Os discursos sórdidos fizeram com que o Festival de Cannes vetasse sua participação, no ano em que Melancolia foi lançado. Mesmo com essa situação horrível, Kirsten Dunst ganhou o Copa Volpi de Melhor Atriz, enquanto que o cineasta recebeu o título de persona non grata pela Academia.
Essa postura repugnante do diretor se reflete em seus filmes. Melancolia, no caso, que é dividido em capítulos, se inicia com um prólogo em super slow motion. A cena já apresenta a amplitude da devastação que será abordada no decorrer da obra. Com Tristão e Isolda da ópera de Richard Wagner como trilha sonora, o longa trabalha a introdução de seu filme de forma dramática com Justine (Kirsten Dunst) vestida de noiva e presa a raízes e Claire (Charlotte Gainsbourg) desesperada com a colisão do planeta Melancolia com a Terra. O drama prepara o telespectador para as questões emocionais a respeito do medo da morte e a prisão ao casamento, que são abordadas por partes na película.
Após o prólogo introdutório, começa a parte um do filme, nomeada como Justine. O primeiro ato de Melancolia trata de uma mulher depressiva em seu casamento organizado pela sua irmã, Claire, que tenta contagiar a festa com sua felicidade. Durante o evento, a noiva não consegue se conter diante de sua frustração emocional, o que a distancia do convívio social. A cena demonstra o tratamento que pessoas no mesmo estado de Justine recebem da sociedade por meio do olhar de desprezo dos convidados. Outro simbolismo apresentado na história de Justine são as amarras do casamento, representadas pelas raízes na introdução do longa. Toda essa situação, que torna a vida da personagem melancólica, se desenvolve bem lentamente, quase como se a obra quisesse contaminar o telespectador com o estado emocional da protagonista, mas esse ritmo se altera conforme o foco da trama passa a ser Claire.
O segundo ato, chamado de Claire, dá um novo rumo para a história. Focado na outra irmã, a história ganha um rumo interessante ao mostrar como esta lida com a ameaça do planeta Melancolia colidir com a Terra. O estado emocional de Claire passa da alegria para uma ansiedade melancólica, enquanto que Justine, já conformada com o fim súbito, se mantém serena frente a situação. Esse jogo psicológico do roteiro, em que as protagonistas mudam de papéis, projeta como as emoções são voláteis diante dos obstáculos enfrentados.
Outro personagem na trama é John (Kiefer Sutherland), marido de Claire. O cientista, frio e apático, apresenta-se sempre cético frente à órbita do planeta Melancolia cruzar com a da Terra. Esse movimento interplanetário, chamado de dança da morte, parece inconcebível para o homem convicto de seus cálculos. Por meio de suas certezas, ele tenta consolar a esposa, o que funciona até certo ponto, porém sua postura frívola acaba sendo ainda mais desestabilizante. Através do ceticismo de John, o filme se assemelha com outros do diretor, ao trabalhar a rigidez humana que se nega a enxergar o óbvio.
Antes de contemplar a extinção humana com uma colisão espacial, a cinematografia do dinamarquês já havia trabalhado a questão da escatologia em Anticristo, o primeiro longa da Trilogia da Depressão, sucedido por Melancolia e Ninfomaníaca. Os três filmes não apresentam uma narrativa contínua, mas seu conteúdo apresenta certas similaridades, como a relação dos personagens com a violência, o niilismo e a animalização humana. Com o ideal pessimista da trilogia, Melancolia surge de Anticristo como marco da saída do diretor da depressão. Desse modo, a segunda película apresenta todo o ideal deprimente do cineasta, mas sem ser perturbador assim como os demais.
Desse modo, na ausência do sentimento de agonia e desconforto tão comuns nos filmes, Melancolia se arrisca pela antítese emocional das personagens para narrar sua história. A trilha sonora repleta de músicas clássicas, a fotografia de Manuel Alberto Claro e os efeitos visuais de Peter Hjorth contribuíram para elevar o sentimento dualístico abordado na obra. Mas apesar de todos esses êxitos na elaboração da peça audiovisual, a produção não atinge um nível profundamente psicológico esperado. O aspecto da exploração da mente humana já havia sido melhor trabalhado anteriormente em Dogville e Dançando no Escuro, mas o segundo filme da Trilogia da Depressão não vai além do jogo entre razão e emoção.
Mas apesar de não apresentar grande profundidade de simbolismos psicológicos, Melancolia constrói uma narrativa coesa repleta de similaridades com outras obras. A começar pelo prólogo dramático em super slow motion com uma colisão de planetas guiado pelas notas vibrantes de Tristão e Isolda, que apresentam grande similaridade com as características de filmagem utilizadas por Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Outro ponto é a similaridade na construção da personalidade Justine com Ofélia de Hamlet. Ambas as personagens flertam com o niilismo e com a atração pela morte, sendo esse o motivo da calmaria da protagonista de Melancolia com a aproximação do planeta desconhecido. Esse alinhamento cósmico, chamado de dança da morte, se aproxima também do conceito apresentado em O Sétimo Selo. Na película de Ingmar Bergman, em que a morte joga xadrez com um soldado das cruzadas que busca viver, o fim inevitável do ser humano recebe o mesmo nome que o cruzamento das órbitas da obra do dinamarquês.
Essa aproximação com a Arte é muito presente nas produções de Von Trier, que sempre conciliou o lado artístico com a morbidez de seus filmes, repletos de violência extrema, sexo explicito e mutilação. Mas, apesar dos êxitos, é importante não separar o artista da obra, como no caso no caso do diretor, que sempre refletiu seu lado sórdido em seus trabalhos. Em Melancolia, mais especificamente, não há cenas chocantes como essas. O rito de passagem que ele criou como saída da depressão fez com que um longa tão pessimista fosse, ao mesmo tempo, um de seus trabalhos mais artísticos, com a fotografia de Manuel Alberto Claro impecável e uma trilha sonora comovente. A tragédia já anunciada no prólogo permite ao menos a contemplação da imensidão azul do planeta Melancolia.