Vitor Evangelista
Uma família negra de Minas Gerais navega por um Brasil incerto e nebuloso, afetado pela eleição de um presidente que representa o oposto de quem são. O véu de mundanidade da trama, escrita e dirigida por Gabriel Martins, chamou atenção por onde passou, sendo condecorada em Sundance e em Gramado, chegando, enfim, às portas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que escolheu a obra como a representante nacional na corrida pela estatueta de Melhor Filme Internacional no Oscar 2023.
Para quem teve o prazer de assistir Marte Um, que se encontra em cartaz em pouquíssimas salas de cinema do país que representará no ano que vem, os motivos são óbvios. De maneira quase familiar para o Cinema nacional, e em especial o mineiro, Martins costura uma trama de seres humanos à beira de um ataque de nervos, cenário comum e habitual para a população que enxerga em Jair Bolsonaro um mal a ser excomungado de Brasília desde o dia seguinte ao fim de 2018.
Produzido pela Filmes de Plástico com coprodução do Canal Brasil, e financiado por um edital que trouxe ao mundo o igualmente excepcional Cabeça de Nêgo, Marte Um começou sua caminhada pelas salas de cinema no Festival de Sundance, onde disputou o Prêmio do Júri. A história, embora enraizada em uma realidade brasileira, estampando uma família da periferia que enfrenta o salário curto, o mercado caro e o país se engolindo, ressoa pelas notas de simpatia e, antagonicamente a ideia do governo atual, otimismo.
O responsável por capturar essa aura do sonhar, presente desde a esperança de Deivinho (Cícero Lucas) até a voracidade de Eunice (Camilla Damião), é Daniel Simitan e sua trilha sonora espectral, reconhecida com um dos quatros Kikitos que o filme levou para casa no Festival de Gramado. Isso por conta da suavidade que o texto de Martins emprega na criação de suas cenas e ambientações, primeiro isolando sua família protagonista para então agrupá-los, fortalecendo uma das mensagens do filme: unidos, viver é mais descomplicado, ainda que o processo continue árduo e nada valorizador a quem o enfrenta.
O pontapé vem na figura de Tércia (Rejane Faria), a matriarca em constante estado de alerta, já que, após alguns infortúnios bombásticos, passa a acreditar que tem uma maldição lhe mordendo o calcanhar e tenta a todo custo se afastar da família e poupá-los de eventuais tragédias. Na interpretação de Faria, a personagem ganha o coração de quem assiste suas desventuras, e obtém pontos na forma em que doma seus arredores, apaziguando o marido, colocando juízo na cabeça da filha mais velha e apoiando os sonhos do caçula.
Wellington (Carlos Francisco, de Bacurau) é a peça mais descompassada da equação. Pai amoroso mas um tanto impaciente, é ele quem leva nas costas os maiores traumas do filme, todos condensados e enclausurados na ficha do Alcóolicos Anônimos que representa tanto uma vitória quanto um lembrete para o torcedor fanático do Cruzeiro. Nas trocas com Eunice, Francisco eletriza o ambiente, e, nas cenas com Deivinho, luta para não atolar o jovem com sonhos próprios, adormecidos pelo curso da vida.
Para Eunice, resta a Damião o ato de extravasar Marte Um e oxigenar o filme para além dos dramas de meia-idade e da adolescência. Buscando um refúgio da aconchegante casa em que nasceu e cresceu, chega a hora de exercitar sua identidade como adulta, como pessoa queer e como alguém há muito ofegante em se colocar como prioridade da história. Na conjectura de um Brasil utópico e distópico ao mesmo tempo, o diretor molda a narrativa da filha mais velha longe dos arquétipos de preconceito e revolta.
De fato, Marte Um se centra em personagens complexos e multifacetados, protagonizando uma trama que não se limita em momento algum. Deivinho, o elo que conecta o distante planeta vermelho ao Brasil da família mineira, não se acanha em sonhar. Visitando o reino em que tudo é possível, o garoto não quer saber de marcar gol e dar carrinho (por mais que tenha talento para tal). Ele quer colonizar a galáxia, mas para isso precisa enfrentar as expectativas daqueles que o criaram sob um molde. Quebrar a ordem das coisas é um processo custoso, e Gabriel Martins, que executa a montagem ao lado de Thiago Ricarte, não cansa de nos lembrar disso.
Considerando os exemplos recentes de longas nacionais deixados de lado pelos votantes estrangeiros, a Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais decidiu reformular sua equipe e método de seleção da obra que representará o país no Oscar. Com um corpo votante composto por dezenove profissionais da área, Bárbara Cariry presidiu a comissão em 2022, e uma pré-lista com 6 produções foi divulgada. Ao lado de Marte Um, estavam A Mãe (de Cristiano Burlan), A Viagem de Pedro (de Laís Bodanzky), Carvão (de Carolina Markowicz), Pacificado (de Paxton Winters) e Paloma (de Marcelo Gomes).
Ao final das quase duas horas, a breve sinopse do longa ecoa como uma maneira de vender um filme que não se delimita como simples reimaginação ficcional de uma realidade extremamente desgastante, que diariamente estampa capas de jornais e preenche VTs da televisão no horário nobre. Mais que uma crônica sobre uma família nada endinheirada lidando com a eleição de um presidente abominável, Marte Um faz o retrato de como a Arte no Brasil resistiu e ainda reage.