Gabriel Leite Ferreira
Madvillainy, o primeiro e único álbum da dupla MF Doom e Madlib, completou 15 anos na última semana e poderia muito bem ter saído ontem. Especialmente em 2018, sua influência ressoou em alto e bom som no hip hop com o some rap songs de Earl Sweatshirt. A produção lo-fi, as canções sem refrão, as letras enigmáticas e o fluxo contínuo entre as faixas: um filho direto da obra-prima de 2004. Os vilões mais daora do pedaço nunca foram tão relevantes.
Uma das parcerias mais cultuadas do gênero nasceu quase que do acaso. Após Operation: Doomsday (1998), debut que sacudiu as estruturas da cena, e o subsequente fim do selo que o lançou, MF Doom sumiu do radar. O britânico Daniel Dumile surgiu primeiramente sob o pseudônimo Zev Love X no grupo KMD, junto do irmão DJ Subroc. Boicotes de gravadora e a trágica morte de Subroc puseram um fim ao projeto, e Dumile passou a viver na rua.
Para seu renascimento no fim dos anos 90, um novo pseudônimo, novas abordagens líricas e a famosa máscara. MF Doom baseou sua persona no Doctor Doom da Marvel (ou Doutor Destino), o que culminou em todo o conceito: um super-vilão com verborragia tremenda e flow inigualável.
Madlib começou sua carreira no grupo Lootpack e posteriormente adotou o nome Quasimoto para lançar suas experimentações como MC. Logo após o lançamento de Operation: Doomsday anunciou que gostaria de colaborar com Doom. Demorou alguns anos, mas assim que o mascarado ouviu os beats do produtor o interesse foi correspondido e, em 2002, a dupla começou a trabalhar.
O processo foi rápido. “Nós quase não falávamos”, disse Doom em certa ocasião. “Era como telepatia. Nós conversávamos pela música.” Usando cerveja, maconha e comida tailandesa como combustível eles gravaram a primeira versão do que viria a ser Madvillainy. O DNA dos beats de Madlib tem tanto jazz norte-americano quanto música popular brasileira: no final daquele ano ele veio ao Brasil a convite da Red Bull Music Academy e utilizou suas duas semanas aqui para produzir algumas das faixas do álbum. Até que alguém teve acesso à demo da obra e a disponibilizou na internet.
Isso retardou o lançamento de Madvillainy em um ano. Desmotivados, cada um se voltou para seus projetos solo – e o hype só cresceu.
“O melhor MC sem corrente de ouro que você já ouviu”
Quando saiu, em 23 de março de 2004, Madvillainy obviamente não foi um grande sucesso de vendas, mas caiu nas graças de veículos que não costumavam cobrir hip hop. Washington Post, New Yorker e New York Times aclamaram o álbum e, em retrospecto, é fácil entender o porquê.
Em rara entrevista publicada ontem, Doom traz vários insights sobre os 15 anos de sua obra-prima. Dentre eles, um é essencial para compreender a qualidade e importância do disco. “Eu escrevo rimas para ganhar dinheiro. Fora isso, não escuto hip hop. Eu escuto jazz e instrumentais e coisas assim”, afirma sem rodeios. Pode parecer estranho, e realmente o é.
Enquanto 50 Cent revitalizava o polido gangsta rap e Kanye West retocava samples de soul à perfeição, Madlib estava construindo beats de pouco menos de 3 minutos com discos de jazz sujos em um equipamento básico. O estúdio em que Madvillainy foi majoritariamente concebido era um abrigo anti-bombas. Aliás, só o fato de Doom usar uma máscara para rimar já destoa totalmente de toda a estética do rap, imagine cantar sobre tentar dar uma bala de menta a uma garota com mau hálito (“Operation Lifesaver aka Mint Test”) ou assumir um segundo (!) alter ego para lamentar um término amargo (“Fancy Clown”), entre tantas outras temáticas inusitadas e/ou bizarras.
A questão é que a dupla Madvillain (uma entidade pela qual Doom conversa despretensiosamente com Madlib) é naturalmente avessa aos estereótipos do rapper. Duas pessoas introvertidas, interessadas apenas em fazer música e chapar. Não há sequer uma ambição intelectual desmedida. Apesar de possuir um dos vocabulários mais ricos da história do rap, Doom não se leva a sério. Sua persona é análoga a anti-herois debochados como Deadpool ou os criminosos estetizados de Tarantino. No tratado definitivo sobre Madvillainy, Jeff Weiss da Pitchfork resume bem seu appeal: “A máscara aumenta o drama e o mistério, mas também anula expectativas convencionais. (…) Nossos ouvidos se focam nas imagens cartunescas, não no trintão barrigudo e careca no microfone.”
Um dos singles do álbum, “All Caps” incorpora perfeitamente a estética cartunesca que guia a obra de Doom
Essa anti-estética reflete diretamente no produto final. São 22 faixas em 46 minutos; a título de comparação, The College Dropout de Kanye West tem 21 faixas e 1h16min. Madlib produzia beats em escala industrial, entregando CDs com 50 instrumentais para Doom escolher. Assim que escolhia, o mascarado gravava seus versos na hora. “[Na persona do Doom] eu estou pensando na minha própria mente, não estou falando com ninguém. Você está ouvindo meus pensamentos, o que eu penso enquanto caminho, pensamentos aleatórios”, diz o MC. Ou seja, é quase tudo instantâneo.
Na instantaneidade sincera, a dupla (e seus convidados) se garante. Em “Raid”, MED dispara: “Graças ao rap não tenho um puto / Me fez sair de fininho de filas com garrafas na cintura.” Stones Throw, a gravadora que promoveu o encontro, era formada por três pessoas e mal tinha dinheiro para bancar a estadia de Doom em Los Angeles, no estúdio de Madlib. Não à toa, os contratos foram assinados num prato de papelão (!). Como canta Wildchild, outro feat, em “Hardcore Hustle”: “poder negro ao povo que apoia música crua!”
Antes de Madvillainy ver a luz do dia, a gravadora demandou uma música de encerramento. Em uma sessão Doom concebeu a antológica “Rhinestone Cowboy”
“É o bastante”
É errôneo invalidar o trabalho de Doom pela sua afirmação de que só rima pelo dinheiro (afinal, 11 em cada 10 MCs fazem a mesma coisa). Ele desvela sua relação com as rimas na entrevista para a SPIN: “Eu não sabia que [rimar] seria algo tão lucrativo. Era algo que fazíamos como hobby, para manter a mente ligada.” Some isso ao fato de que ele praticamente rima para si mesmo, e voilà: Doom é o poeta das ruas por excelência. É sua vocação e missão de vida.
O fato de nunca ter repetido o sucesso de Madvillainy não diz nada sobre sua carreira. Ele se mantém ativo, colaborando com outras pessoas e dando vida a mais dois alter egos, Viktor Vaughn e King Geedorah, além de também ser produtor. Sempre nas sombras do underground, talvez como um Batman sem grife ou um Deadpool mais sombrio. Madlib é um pouco mais sociável que o colega, trabalhando com gente como Kanye West e Jay Z. A dupla não parou de produzir durante essas quase duas décadas – resta aguardar um possível Madvillainy II.
Eu poderia ter feito um texto muito maior, esmiuçado os versos enigmáticos, traçado paralelos com outros rappers, enfim. Mas, no fim das contas, o que importa é como um álbum soa pra você. Qual o sentimento que ele evoca. E, falando por experiência própria, Madvillainy me proporciona um amplo espectro de emoções, desde a contemplação (“Accordion”, “Shadows of Tomorrow”) à alegria (“Rainbows”, “Great Day”) à euforia (“Raid”, “America’s Most Blunted”) – todas elas extremamente positivas. Ouvi-lo é exatamente como ler uma HQ: tudo é possível.
Madvillain fez tudo ser possível no rap. Pergunte a Tyler The Creator, Earl Sweatshirt, Lil Ugly Mane, Milo, Kanye, todo e qualquer rapper fora do estereótipo gângster. É possível ser um rapper badass sendo uma pessoa normal (ou quase isso). Confira já!
Eu ouvindo Madvillainy