Mariana Pinheiro
“Estarei de volta quando você acordar“, diz uma mulher ao seu filho horas antes de ser brutalmente assassinada enquanto trabalhava. Ela arrumou-se e o beijou pela última vez sem saber o que aconteceria em mais uma noite nas ruas. Essa é a primeira cena de Holy Spider, a qual elucida tudo o que o filme pretende contar durante sua exibição. Nela, uma prostituta iraniana caminha pela cidade de Mashhad enfrentando olhares mal-intencionados e buscando refúgio em drogas para escapar da realidade assombrosa a qual é condenada a viver.
À espera de dinheiro em uma viela escura, a personagem é convocada a prestar serviço e surpreende o telespectador quando é sequestrada e, depois, enforcada pelo seu próprio lenço – ato extremamente simbólico para a construção do enredo. Em takes longos de agonia explícita, a mulher havia caído na teia de assassinatos do “matador de aranhas”, caso real que o diretor Ali Abassi faz releitura nesse longa-metragem destaque no Festival de Cannes e pré-selecionado ao Oscar.
Indicado e aclamado por grandes premiações de Cinema, Holy Spider promove a representação essencial da orientalidade para o mundo – pouco valorizada nas academias cinematográficas historicamente xenofóbicas. Porém, a obra não resume-se a isso e expõe em detalhe a realidade do Irã. Em análise geral, a proposta do filme demonstra e examina o baque entre a estrutura social política religiosa no País e os atos revoltosos que lutam pela aplicação efetiva dos Direitos Humanos no local.
Jina Mahsa Amini e sua injusta morte produziram um paralelo significante da realidade para a narrativa fílmica: a jovem foi assassinada pela Polícia Militar sem motivo aparente – considerada infligidora da lei devido à exposição mínima de seu cabelo publicamente. O evento repercutiu e paralisou as ruas do país inteiro dada a tirania militar e a supremacia religiosa que tirou sua vida em Setembro de 2022.
Ali Abassi lançou Holy Spider, seu segundo longa-metragem, em Maio do mesmo ano, poucos meses antes do caso de Amini, o que confirma o retrato sangrento do diretor acerca da vida no Irã. “A ideia do filme acabou se misturando com a realidade da sociedade. Se você está falando sobre o apartheid contra as mulheres, isso acontece há muito tempo, e não é um sistema sustentável [..], uma hora, ia explodir”, Abassi reconhece.
Saeed Hanaei (Mehdi Bajestani), um serial-killer, juntamente com Arezoo Rahimi (Zar Amir Ebrahimi), uma jornalista estudando os assassinatos cometidos por ele, estrelam esse terror psicológico inspirado na história real de um dos criminosos mais temidos do Irã entre os anos de 2000 e 2001. Hanei – nome fictício atribuído a Saeed Hanali pelo filme – mata prostitutas porque as vê como “indignas à sociedade”. Ele acredita fazer uma limpeza social ao retirar “pecadoras” das ruas, trazê-las para sua casa e enforcá-las até a morte. Enquanto isso, Rahimi – personagem criada para auxiliar no desenvolvimento da história – chega à Mashhad para investigar a massa de homicídios semelhantes que estavam acontecendo.
Assemelhar a obra a um caso real acarreta na responsabilidade de expor a realidade via linguagem audiovisual. Holy Spider apropria-se grandemente de sua fotografia, realizada por Nadim Carlsen, para simbolizar suas temáticas. Pouca iluminação e tons esverdeados ou azuis aludem às próprias luzes da noite na cidade – seu cenário principal – e motiva o medo e a aflição na audiência. Essas características são propositalmente postas para se assemelharem aos filmes noir, conhecidos pelos seus jogos de iluminação, enquadramentos inusitados e cenários urbanos criminais.
Abassi tece sua cinematografia com focos frequentes nos rostos do elenco, a fim de demonstrar claramente os sentimentos dos personagens diante das desconfortáveis situações em que atuam. Tal técnica, por exemplo, submete o público a enxergar verdadeiramente as prostitutas apresentadas, com o objetivo de humanizá-las, empatia esquecida por grande parte da população.
A interpretação dos artistas foi explorada profundamente como peça essencial na qualidade do filme, o que resultou em elogios por parte dos críticos. Uma atuação medíocre tornaria Holy Spider detestável à plateia: por possuir uma narrativa cruel, performances ruins tornariam a obra uma piada de mau gosto ou em uma produção sem nexo e vazia.
Dentre os atores, Zar Amir Ebrahimi, intérprete de Rahimi, foi destaque em sua categoria. Não por menos, ela recebeu uma indicação à Melhor Atriz no Festival de Cannes e no Prêmio Robert da Academia de Cinema Irlandês. Neste último, levou o troféu para casa. O talento e duro esforço da atriz foram realçados pela vivência pessoal, da qual ela soube utilizar como ferramenta para representar seu emblemático papel. A artista fugiu do Irã no começo de sua carreira após ter conteúdo íntimo vazado. Com medo de ser proibida de trabalhar ou até presa, ela escapa do País e contrapõe a imagem idealizada da mulher iraniana, experiência próxima à de sua personagem.
A aranha, contudo, cai em sua própria armadilha: a crítica que o roteiro – escrito por Ali Abassi e Afshin Kamran – propõe para o machismo estrutural iraniano é camuflada pela violência gráfica e protagonização do assassino, ocasionando em um desenvolvimento insuficiente que o eixo feminino não poderia ter no script. A hipocrisia se sobrepõe ao que é originalmente proposto. As mulheres de Holy Spider são apresentadas superficialmente, como acontece com a própria co-protagonista, Arezoo Rahimi, cujas tramas foram abandonadas durante o longa.
Todos os pontos levantados pela equipe de roteiristas são válidos e bem postos, mas não evoluem posteriormente. A relação de trabalho entre a jornalista e um agente local que estava na investigação serve como exemplo disso. O homem a assedia ao prometer ajudá-la em seu caso fora do horário de expediente. Então, comete slutshamming às custas de uma denúncia feita por ela no cargo anterior, em que sofreu outro abuso de autoridade. Apesar de contar uma situação comum e de abordagem necessária – ainda mais no Irã, onde tais temas são completamente omitidos -, a cena apenas é lançada como se para preencher uma pauta temática sobre feminismo, sem retomada futura. Isso se repete em vários eventos e ocasiões durante o filme.
O processo de criação não teve o intuito de transmitir uma mensagem sobre a situação de gênero no País, mas sua preocupação geral soa como uma exposição panorâmica das problemáticas sociais e religiosas. Com isso, a obra prefigura uma abordagem esvaziada da trama principal: um caso de assassinato em massa de prostitutas pelo machismo sacro do Estado iraniano. Ali Abbasi, aliás, admite não estar centrado no ponto de vista feminino, já que ele acredita ser uma “história com muitas camadas”.
Ainda assim, o longa-metragem sucede em outros objetivos, como a perspectiva sobre religiosidade, família e política, exibidos com uma linguagem visual chocante. O fechamento demonstra em precisão tais aspectos, já que metáforas são muito bem utilizadas durante a situação final do protagonista Saee Hanaei: a arma de crime da qual abatia suas “presas” é utilizada contra o “predador”. Porém, a simbologia já está presente anteriormente dentro da cinematografia. Em certa cena, grades de segurança em um templo aparentam ser de uma cadeia, devido ao enquadramento fotográfico, o que revela uma interpretação de aprisionamento mental que a devoção pode causar, além do sentido literal de um criminoso pertencer ao presídio.
Em face de problemáticas e sucessos, Holy Spider ocupa um espaço importante no Cinema internacional, mas que poderia reproduzir com mais apreço a mulher iraniana por meio do desenvolvimento das personagens e seus merecidos enfoques. O inconveniente da produção não é a crueza retratada durante os dias no Irã, característica intrigante do diretor em seus filmes, mas sim o esquecimento do caso real que relata e seu profundo transtorno societário implícito. Esse, do qual o sexo feminino sofre regularmente e é de conhecimento geral no País.
Pelo pouco que conheço do Abbassi é evidente esse apreço doentio pelo horror corporal. Não cheguei a assistir o filme mas, pelo seu texto, e algumas resenhas que li na internet, ele expressa exatamente isso no longa. Acredito que a correlação com a atual situação social e cultural nas ruas do Irã se encaixaram perfeitamente com o propósito do filme que, aparentemente, é causar um desconforto visual tão grande que torne impossível o expectador não se sensibilizar e ter empatia pelas vitimas dessa agressão. Talvez estigmatize ainda mais a imagem agressiva do país mas, acho necessário para comecemos a dar mais importância e visibilidade para a pauta: ser mulher no Irã.
Enfim, crítica incrível e muito interessante. Parabéns, Mariana!