Lady Gaga nem sabe do que está rindo em Harlequin

A imagem mostra a cantora Lady Gaga, uma mulher branca em um banheiro sob o chuveiro, com um colete salva-vidas vermelho. A água está caindo sobre ela, molhando seu cabelo castanho com mechas vermelhas, que está bagunçado e parece colado ao rosto. A maquiagem está borrada, com uma linha preta marcante saindo do olho direito, remetendo a um estilo dramático ou expressionista. O fundo é composto por azulejos brancos simples. O título "Harlequin" está escrito em letras brancas e cursivas sobre a imagem, com "Lady Gaga" também escrito abaixo.
Harlequin debutou em 20º lugar na parada musical estadunidense Billboard Hot 200, a pior estreia de um disco de Lady Gaga nos charts (Foto: Interscope Records)

Henrique Marinhos e Nathalia Tetzner

Se em algum momento você achou que Lady Gaga havia perdido sua capacidade de inovar, Harlequin (2024) vem para confirmar a sua desconfiança. Lançado poucos dias antes do filme Coringa: Delírio a Dois, o álbum, composto majoritariamente por regravações de jazz, parece ser uma tentativa de Gaga de provar que ainda tem a sofisticação para dominar qualquer gênero. Mas será que a artista que nos deu The Fame Monster e Born This Way ainda consegue trazer algo novo aos palcos?

Depois das colaborações com Tony Bennett em Cheek to Cheek (2014) e Love for Sale (2021), aqui ela se aventura em seu primeiro álbum solo de jazz. São 41 minutos distribuídos em 13 faixas, das quais apenas duas são originais (Folie à Deux e Happy Mistake). Lançado pela Interscope Records, a obra conta com uma produção vocal de Gaga e Benjamin Rice e reúne uma equipe de mais de 30 músicos, um exemplo claro do que se espera de uma gravação com orçamento alto e uma equipe de engenheiros de som premiados. 

No aspecto técnico, a produção é belíssima. Stefani Joanne Angelina Germanotta faz jus às raízes no Teatro e entrega uma performance vocal repleta de emoções. Obviamente, não deixando de ser um tanto quanto caricata em certos momentos, até porque, há de se concordar que não exagerar maneirismos não é necessariamente o feitio da cantora, acostumada a levar diferentes personas ao público. Em Harlequin, ela une a sua essência irritante de theater kid com a perspicácia do produtor Rice, adicionados à masterização e mixagem de Emily Lazar e Serban Ghenea, que fazem os instrumentos brilharem.

A imagem mostra Lady Gaga, cercada por várias outras pessoas, incluindo seguranças e fãs na saída do after party de seu novo álbum. Ela está usando um visual excêntrico, com um cabelo vermelho vibrante e óculos escuros. Sua roupa é composta por um colete ou camisa estampada com várias imagens coloridas, incluindo emojis e rostos desenhados, trazendo um toque de humor e criatividade à peça. Além disso, ela está vestindo meias ou calças com detalhes em vermelho e branco com rendas rasgadas.
Depois da listening party de Harlequin, os little monsters comemoraram a volta dos looks excêntricos da Gaga (Foto: Neil Mockford)

Toda essa grandiosidade técnica, no entanto, parece mais voltada para manter a segurança do que para oferecer algo surpreendente. Esse é o caso da faixa Folie à Deux, em que a artista é creditada como única escritora, trazendo uma fusão fluída de rock com elementos de jazz, enquanto The Joker oferece a Gaga o espaço para brilhar com uma releitura ousada,  – bem no estilo de Descendentes, da Disney – no tom certo para a Arlequina.

Em uma das faixas originais, Happy Mistake, a intérprete de Shallow consegue finalmente dialogar com as diferentes vidas dela: pessoal, nos palcos e, agora, nas ‘telonas’ do Cinema. ‘Palhetando’ gentilmente um violão, ela compõe uma canção honesta e linda: “Uma disposição solitária/Retratos de uma garota desgastada/Como eu me tornei tão viciada/No amor do mundo todo?”. Por alguns minutos, Lady Gaga nos transporta para uma atmosfera melancólica à là Billie Eilish, que serve como ponte entre a loucura da fama e a insanidade da ‘loirinha’ mais insana dos quadrinhos.

Outros momentos de destaque são em Get Happy (2024) e World on a String, produções em que Rice permite que o âmago teatral de Gaga domine, sem deixar o instrumental ficar atrás. Enquanto os arranjos orquestrais das guitarras, por Tim Stewart nos remetem a uma qualidade quase cinematográfica (e muito bem-vinda) dado o envolvimento do álbum com a trilha sonora do filme, que não são as mesmas versões.

Foto da cantora Lady Gaga atuando no set de Coringa: Delírio a Dois como Arlequina.  Ela está usando uma blusa preta e branca em padrão de losangos, típica do figurino clássico da personagem, e um casaco escuro por cima. Seu cabelo é loiro platinado, com um corte curto e bagunçado, reforçando o estilo icônico da Arlequina. Ela está com uma expressão de euforia, braços abertos em um gesto amplo. Ao redor dela, há vários policiais uniformizados. A cena está ocorrendo em um ambiente público, em uma escadaria.
No último ato do longa, o Coringa suplica que Harlequin pare de cantar, e nós também (Foto: Kristin Callahan)

Gaga, que dispensa apresentações, opta aqui por um caminho seguro, quase reverente demais às canções originais. Oh, When the Saints é um exemplo de como a falta de conexão temática com o filme e a sequência do álbum prejudica o ritmo — enquanto releituras como a de Visões da Raven se tornam icônicas, essa é uma das irônicas. Embora a faixa tenha um solo de guitarra interessante, a estrutura geral não é diferente de qualquer outra versão que já ouvimos de jazz tradicional.

É justamente na concepção que o disco peca. Por se tratar de uma maioria de covers, o projeto, recheado de fotos conceituais e expectativas, não acaba soando original. As estruturas das faixas sofreram poucas alterações, fazendo com que Harlequin se encaixe mais como uma remasterização do que, de fato, uma releitura. Para o ouvinte, fica a sensação de que Lady Gaga esperava entrelaçar a sua figura com a anti-heroína da DC suficientemente para emplacar um filme solo no futuro. Contudo, isso fica difícil quando um projeto como esse parece não tomar decisões tão objetivas, além do fracasso em bilheteria de Coringa: Delírio a Dois.

 Fotografia promocional da cantora Lady Gaga para o disco Harlequin. Ela é uma mulher branca de cabelos e olhos claros. O cenário se trata de um quarto bagunçado e monótono. A câmera a captura por inteiro enquanto dança em cima de um colchão no chão. Gaga veste um tecido transparente pelo corpo. É possível notar a precariedade do ambiente.
O projeto foi apelidado de LG 6.5 (Foto: Interscope Records)

A escolha de regravações clássicas, como Smile e If My Friends Could See Me Now, peca ao manter arranjos que soam desatualizados. E se Lady Gaga queria emular Judy Garland ou Frank Sinatra, ela até acerta no tom. O problema é que, quando a comparação inevitável com esses gigantes é feita, Gaga simplesmente não acrescenta nada de novo. Tudo é muito competente, mas não suficiente para compensar a falta de inovação. O álbum flui como uma sequência de homenagens ao passado e falha em conectá-las a algo que faça sentido em sua carreira em 2024, ou mesmo no universo do Coringa.

Tal falta de conexão é ainda mais decepcionante quando pensamos nas promessas realizadas na semana que antecedeu o lançamento de Harlequin. Anunciado de surpresa, a gestação do disco foi curta, porém, repleta de declarações e visuais, no mínimo, intrigantes. Uma pena que, quando colocado em prática, o apelido ‘LG 6.5’ tenha sido tão preciso; o disco não consegue decidir o que quer ser e acaba soando como algo perdido na discografia de Gaga. Dotado de qualidade artística e faltando a criatividade característica da artista, o projeto tem tudo para passar despercebido, algo nem um pouco usual para quem já dominou o mundo na década de 2010.

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