Amabile Zioli e Guilherme Machado Leal
Ao assistirmos a uma obra cultural, esquecemos de todo o processo por trás de sua criação. Engana-se quem resume o papel da Arte somente ao conteúdo que ela traz, já que, no final do dia, empresários enxergam filmes e séries como fontes de renda. Ver um conteúdo sendo adiado mexe com o coração dos fãs, mas antes disso, não ter o seu trabalho reconhecido também atrapalha o amor de quem tem o audiovisual como emprego. Afinal, a indústria hollywoodiana foi construída nos moldes da sociedade capitalista e, dessa forma, o dinheiro faz parte desse meio. Por isso, entender as demandas exigidas na greve dos roteiristas, mesmo que ela já tenha sido encerrada, é fundamental para que a conversa sobre o tema seja compreendida da melhor forma, até para blindar um futuro mais sólido para o setor.
No dia 2 de Maio de 2023, o Sindicato dos Roteiristas da América (o Writers Guild of America ou WGA) entrou em greve. As principais exigências da categoria contra a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP), associação comercial que representa os estúdios de Hollywood, eram melhores condições de trabalho e um aumento salarial. A remuneração residual também foi pauta, principalmente no que se refere aos serviços de streaming, que não possuem tanto controle das reproduções quanto as TVs.
A paralisação de 2023 não foi a primeira da categoria: em 2007, o WGA pausou suas atividades em busca de melhorias salariais e ganhos residuais – também citados na greve mais recente, porém, com enfoque na venda de DVDs. O ato durou 100 dias e teve seu fim em Fevereiro de 2008, após um prejuízo de quase U$2 Bilhões na economia de Los Angeles. Ainda, antes, os roteiristas pararam por 153 dias em 1988, se caracterizando como a maior greve já realizada pela classe.
Mas, afinal, o que são os residuais?
Uma demanda que marcou tanto a greve dos roteiristas quanto a dos atores (também já concluída com sucesso para a categoria) é o pagamento dos residuais. Eles funcionam como royalties do trabalho exercido pelos profissionais a cada exibição de uma série ou um filme. Um caso que ilustra bem a dinâmica desse assunto é a comédia Friends: o canal Warner Channel Brasil, detentor dos direitos do programa na televisão fechada, paga uma taxa pela presença do conteúdo e, assim, os envolvidos – escritores, produtores executivos e atores – ganham essa participação.
No entanto, quando se trata dos streamings, a situação é diferente: os contratos desse tipo de mídia são outros, já que os serviços de assinatura, como a Netflix, licenciam determinados conteúdos por um tempo definido. Nesse sentido, embora tenha atualizado o seu sistema de contabilização de horas no ano de 2023, com o uso do site da própria plataforma, o streaming não deixa claro como funciona o recebimento dos residuais em relação ao método utilizado. Agora, o número de horas assistidas é dividido pela duração do produto analisado, dentro de um período de 28 dias, para que, assim, se tenha uma verificação mais justa do que realmente foi consumido. Ainda assim, a polêmica dos ganhos residuais também afeta as obras originais de um catálogo online.
O exemplo mais notável é Orange is The New Black. Em meio aos protestos, as atrizes da série contaram que a compensação pelas sete temporadas de um dos maiores sucessos do catálogo – de acordo com Cindy Holland, ex vice-presidente da área de conteúdo original da Netflix, em conversa com a revista Variety – foi ínfima. Em entrevista ao The New Yorker, Kimiko Glenn, intérprete da personagem Brook Soso, revelou a quantia paga pelos 44 episódios atuados: a incrível bagatela de US$ 27,30, equivalente a R$ 130 reais. Com isso, o pouco dinheiro recebido tornou o segundo trabalho como uma fonte de renda alternativa e escancarou ainda mais as injustiças do modelo atual dos residuais.
Inteligência Artificial: uma faca de dois gumes
Diferente do ocorrido de 16 anos atrás, a discussão atual girou em torno da inteligência artificial e o seu uso na produção de obras audiovisuais, uma vez que, a partir da ferramenta, o trabalho dos roteiristas seria dispensável. No contexto da Terceira Revolução Industrial, a mecanização da mão de obra é inevitável, mas quando se trata da escrita, é inconcebível a ideia de que narrativas de personagens sejam desconsideradas em detrimento da rapidez que a IA fornece. Isso também tem relação com o alto número de produções feitas em um curto período de tempo, a exemplo dos filmes de super-heróis.
A Marvel Studios, conhecida pelo seu vasto universo de personagens icônicos e queridos, utilizou do recurso para a criação da abertura da série Invasão Secreta. Por esse lado, a atitude da empresa é conivente com os defensores da tecnologia, mostrando um descompasso entre as inúmeras etapas de produção da sua arte. Imagine o quanto perderíamos se a abertura de WandaVision, que homenageava as décadas da comédia televisiva a cada episódio lançado, fosse entregue a uma simples ferramenta. Assim, vale a pena se perguntar: precisamos mesmo da IA?
É impossível comparar a capacidade humana de criar e desenvolver histórias capazes de tocar tão profundamente outro indivíduo com a de uma inteligência artificial, que não possui qualquer tipo de emoção. Atualmente, a discussão principal foca no treinamento desautorizado de tais tecnologias com roteiros já existentes e produzidos por pessoas, a fim de prepará-las ainda mais para assumir totalmente o posto desses trabalhadores.
Com a greve, Hollywood teve ainda mais certeza de que a classe é sua parte vital. Sem os roteiristas, diversas produções foram adiadas: Stranger Things, The Last Of Us, The White Lotus, Duna 2 e Challengers são alguns exemplos que trouxeram prejuízo para a indústria. A TV não ficou de fora, com alguns programas semanais também sendo afetados, como o The Tonight Show com Jimmy Fallon.
Os atores não ficaram de fora
Como forma de apoio aos roteiristas, o Sindicato de Atores da América, o SAG-AFTRA, aderiu à greve em Julho deste ano, marcando a primeira vez em que ambas as classes interromperam suas atividades ao mesmo tempo desde 1960. A partir do dia 13 daquele mês, os atores foram vetados de divulgar quaisquer estreias, assim como paralisar as filmagens de produções futuros.
Não haveria melhor forma para anunciar a adesão ao movimento: durante a première de Oppenheimer que acontecia em Londres, na Inglaterra, o elenco renomado deixou o evento antes da exibição do longa. Mais tarde, Christopher Nolan, diretor do filme, explicou a motivação da iniciativa. Outros artistas também levantaram a pauta, como Mark Ruffalo, intérprete do Hulk; Bob Odenkirk, o Saul Goodman; e até mesmo Bruna Marquezine, que estreava em Hollywood com Besouro Azul.
Como tudo isso acabou?
Como qualquer tipo de greve, as reivindicações de classe só são ouvidas após um prejuízo significativo. Durante os 148 dias de paralisação, estima-se que US$ 5 bilhões deixaram de ser movimentados na indústria audiovisual, fazendo com que a pressão sobre a AMPTP fosse cada vez maior. O resultado se deu na ratificação do acordo entre o sindicato e os estúdios, representando mudanças significativas para os roteiristas, como melhorias salariais ajustadas à inflação e novas exigências de níveis mínimos de profissionais em salas de roteiro na TV.
Quanto ao uso de inteligência artificial, a ferramenta não poderá ser utilizada para escrever ou reescrever materiais. Além disso, todo conteúdo escrito pela IA não poderá ser creditado aos roteiristas. No caso de materiais já elaborados, é dever da empresa informar a participação da tecnologia no processo de criação.
Quem recebeu a notícia de que sua série ou filme favorito seria adiado entende, a essa altura, que o trabalho da classe é uma parcela significativa para nossos pequenos momentos de lazer do dia-a-dia. Reconhecer que o produto que você assiste precisa passar por muitas etapas até chegar no conforto da sua casa é crucial para a valorização do trabalho árduo daqueles que sustentam a base das produções que amamos. Para além das telas, a história dos roteiristas e seus direitos vem sendo reescrita em tempo real e impacta diretamente no futuro do entretenimento.