Gabriel Oliveira F. Arruda
O haiku é uma forma de poesia curta japonesa definida por três versos de 5, 7 e 5 on (sílabas poéticas). Esses on são então cortados por um kireji, uma palavra que revela a justaposição entre duas imagens, e um kigo, uma referência sazonal que descreve a natureza e a estação.
Não é por acaso que uma das atividades disponíveis em Ghost of Tsushima, o último grande exclusivo do PlayStation 4, seja a composição de tais poemas que refletem diversos questionamentos como morte, vida, sobrevivência, paz e tradição. De fato, a estrutura do haiku tradicional parece informar grande parte da experiência do título.
Desenvolvido pela Sucker Punch Productions, a mesma por trás de séries como inFamous e Sly Cooper, Ghost of Tsushima se trata de uma ficção histórica que narra a invasão mongól no Japão em 1274. Nela, o jogador toma controle de Jin Sakai, um samurai que sobreviveu ao início da invasão e que agora precisa partir de suas tradições para derrotar os invasores e se tornar o titular “Fantasma de Tsushima”.
Como um haiku, muitas das características do título vem em trios. A história é dividida entre três atos, cada qual narrando um objetivo claro na jornada de Jin, e o conflito do personagem é baseado na justaposição entre a tradição de honra e respeito dos samurais e a necessidade de se adaptar a um inimigo que não respeita as regras de confronto que essa tradição demanda.
Jin, interpretado habilmente por Daisuke Tsuji (The Man in the High Castle), é um protagonista reservado, revelando pouco de si próprio através de suas palavras, deixando que seus atos falem por ele. Várias das nuances da personagem vão do próprio jogador ao decidir diálogos e maneiras de se abordar um determinado conflito. No entanto, há uma distinta dissonância na liberdade que o jogo oferece durante a gameplay e a falta de impacto que tais escolhas têm na trama principal.
Há apenas uma escolha que afeta diretamente a narrativa, mas ela só vem no fechamento da história de Jin e, apesar de ser interessante, apenas enfatiza a falta que elas fazem ao longo da campanha. Essa abordagem representa um afastamento do sistema de Karma da série inFamous, que media o progresso do jogador entre ser um herói ou um vilão com base nas suas ações durante o jogo. É possível ver o porquê da Sucker Punch ter optado por uma trajetória de desenvolvimento mais sutil, que deixa em aberto a moralidade das ações de Jin e que não o julga explicitamente por qualquer escolha.
Existem três tipos de narrativas ou “contos”, como o jogo as chama: os que narram a lenda de Jin; as que contam as lutas secundárias dos personagens de Tsushima depois da invasão mongól, e os contos míticos narrados por um músico andarilho que fornecem equipamento e habilidades especiais. Todas essas atividades agregam ao sistema de progressão do jogo, que dispensa níveis e prefere medir o progresso do jogador através do impacto das ações de Jin na ilha de Tsushima, fornecendo novos equipamentos toda vez que a sua lenda cresce.
A história em si é escrita de maneira engajante, porém pouco inventiva, oferecendo uma jornada que faz perguntas previsíveis e não expande muito suas respostas. Apesar disso, ela apresenta personagens secundários memoráveis com tramas pesadas e relevantes, que se revelam integrais para a jornada pessoal de Jin. Há a história de um sensei aposentado rastreando sua última e traiçoeira pupila, uma ladra disposta a tudo para salvar seu irmão e a de uma idosa matriarca em busca de vingança, redenção e sangue.
Apesar de algumas das atividades progredirem a lenda de Jin mais do que outras, há uma sensação real de que todas elas valem a pena ser perseguidas, em parte por conta dos excelentes diálogos, mas também por causa do quão prazeroso é se locomover pelo ambiente de Tsushima. A nova produção da Sucker Punch é construída sobre três pilares principais: exploração, combate e furtividade.
Tomando como inspiração obras consagrados como The Legend of Zelda: Breath of the Wild (2017) e Shadow of the Colossus (2005), o jogo faz o possível para tirar elementos não diegéticos da tela, guiando o jogador através da mecânica do “vento guia”, que sopra na direção do objetivo selecionado a partir de um simples toque no touchpad do DualShock 4, criando praticamente uma bússola orgânica que se encaixa perfeitamente nas paisagens verdejantes da ilha.
É uma adição interessante, e que funciona em virtude da capacidade gráfica e do design visual do título, que possui centenas de partículas no cenário em qualquer dado momento, prontas para se movimentarem na direção que o vento demandar. Cavalgar pela ilha é como se mover dentro de uma pintura, passeando por paisagens idílicas e tropeçando em momentos em que a câmera se afasta do jogador e a composição de cores no céu é simplesmente certa. É um desafio real não parar a cada 5 minutos para tirar screenshots com o excelente Modo Foto do título.
O combate é o elemento mais refinado de Ghost of Tsushima, tirando diversos elementos de títulos contemporâneos como Sekiro: Shadows Die Twice (2019) e Nioh (2017). A arma principal de Jin é sua katana, que pode ser reforçada para dar mais dano ao longo do jogo. Toda vez que sua lenda cresce, Jin ganha acesso a novas “Armas Fantasmas”, equipamentos que lhe dão vantagens sobre os inimigos mongóis, como facas arremessáveis (kunais), bombas de fumaça que cegam seus oponentes e até mesmo uma zarabatana capaz de envenená-los rapidamente e causar terror entre os invasores. Ao derrotar inimigos mais fortes, Jin vai aprendendo novas “posições” que se adequam a diferentes tipos de ataques.
O foco do sistema de combate está na troca rápida entre posições e no uso eficiente de todas as ferramentas à sua disposição. Ele possui uma curva de aprendizado íngreme, demorando para que o jogador adquira novas posições e aperfeiçoe seus equipamentos, mas que se revela em uma das partes mais recompensadoras do jogo.
Depois de dominado, o combate de Ghost of Tsushima é a mais perfeita emulação dos duelos climáticos do cinema chanbara aplicada em larga escala, com letalidade evidente em cada golpe. O título da Sucker Punch até mesmo oferece um modo de exibição que deixa a tela em preto e branco, com uma textura fílmica e dublagem em japonês denominado Modo Kurosawa (inspirado, é claro, no lendário cineasta Akira Kurosawa).
Quase todo confronto oferece a Jin a possibilidade de se revelar e exigir um duelo contra um de seus oponentes: é a clássica cena em que quem ataca primeiro é derrotado com apenas um golpe. O jogo aplica essa mecânica de maneira inteligente, recompensando o jogador por sua precisão e penalizando-o por sua desatenção. Há momentos em que se revelar e derrotar instantaneamente cinco mongóis enquanto o resto fica aterrorizado é a estratégia mais atraente, mas talvez não a mais inteligente (mas é sempre a mais estilosa, diga-se de passagem).
Diferente do seu refinado combate, o sistema de furtividade é bem básico, oferecendo poucas alternativas que o distinguem de outros títulos. Você pode atacar inimigos silenciosamente e atirar com arcos para eliminá-los à distância, mas com exceção de algumas poucas ferramentas, não há maneiras interessantes de se abordar furtivamente uma situação de conflito. Ainda é um sistema que pode ser satisfatório, mas nunca tanto quanto o combate aberto.
E isso é importante, considerando que o conflito do personagem se baseia na oposição entre as duas abordagens. É possível jogar Ghost of Tsushima como um perfeito samurai, com honra e integridade, sem nunca atacar das sombras (exceto quando o jogo te obriga) e ainda assim ter Jin retratado na história como o temeroso Fantasma. Ao todo, a furtividade é algo inconstante que oferece poucas opções, mas que não chega a ser desagradável.
Algo que é constante, no entanto, é a excelência da trilha sonora ao longo da aventura. Composta por Ilan Eshkeri e Shigeru Umebayashi, ela se adapta constantemente às decisões do jogador, partindo de uma cavalgada pacífica em um campo de flores para o combate épico entre samurais de maneira espontânea e harmoniosa, imergindo o jogador no cenário e na narrativa.
É uma trilha sonora primorosa, traduzindo a jornada emocional de Jin em um tema sóbrio, melancólico e energizante. Ela evoca tanto o cenário quanto suas personagens de maneira sutil, com destaques para o tema da Senhora Masako e a sublime The Way of the Ghost, que conta com vocais da cantora Clare Uchima. O primeiro momento em que somos lançados cavalgando no mundo aberto do jogo e Jin estende a mão para alcançar as folhas no chão é quando os visuais, a sonorização, a trilha e outros diversos aspectos entram em sinergia e criam uma das aberturas mais memoráveis da história recente dos videogames.
Ghost of Tsushima chegou no final da geração, representando uma agregação de tudo o que foi desenvolvido ao longo dos últimos anos em jogos de mundo aberto e aperfeiçoando aquilo que ainda faltava. A mais nova IP da Sucker Punch Productions chega em um ano povoado por continuações aclamadas como The Last of Us Part II, Animal Crossing: New Horizons e DOOM Eternal, mas faz sua própria marca tirando inspirações de diferentes fontes e criando um dos mundos abertos mais coesos e engajantes dos últimos anos. O jogo já coleciona troféus por sua direção de arte e trilha sonora, contando ainda com mais de 50 prêmios de Jogo do Ano.
Quando a história da invasão mongól falha em prender nossa atenção, os personagens dela e o mundo em que elas habitam capturam nossa imaginação. São as cavalgadas ao pôr do sol, os duelos sangrentos sob folhas de outono e a viagem sombria de um jovem samurai para se tornar um fantasma que nos fazem seguir adiante.