Raquel Dutra
Visuais rústicos e paisagens bucólicas fotografadas em preto e branco mas que ocasionalmente revelam verdes úmidos e marrons aconchegantes. Foi com essa serenidade que Taylor Swift surgiu nas redes sociais no dia 24 de julho para anunciar seu novo álbum, folklore, apenas 24 horas antes de seu lançamento.
Para um conhecedor dos trabalhos da artista, essas características podem soar levemente familiares, assim como as batidas pop que surgem timidamente na primeira faixa do disco. Mas no primeiro verso da música em questão, the 1, Taylor afirma que está “tentando algumas coisas novas” e aos poucos vai demonstrando que, em seu novo álbum, nada é 100% novo, nem 100% reciclado. Por isso, não é algo que soa totalmente desconhecido e, curiosamente, também não é mais do mesmo. Na verdade, ele está em algum lugar no meio dessas duas características e, ao mesmo tempo e de alguma forma, também está longe de ambas.
Assim, uma coisa já é clara: o novo álbum de Taylor Swift é instigante. Ele não se entrega à dualidades superficiais e nem atende às expectativas de ser necessariamente “isso ou aquilo”. A dinâmica aqui é outra: fruto de uma profunda liberdade criativa, é brincando com esses limites e misturando essas noções que a artista desenvolve a forma e o conteúdo do disco. Seguindo com firmeza suas próprias determinações, ela viaja por um caminho sinuoso cercado por histórias, memórias, referências e melodias para cumprir com maestria seus objetivos. Isto é, registrar sua identidade, sua cultura, e assim, construir seu próprio ‘folklore’.
Aqui, Taylor não se preocupa em se definir dentro de um único estilo nem tenta se encaixar em alguma caixinha. Mais uma vez, ela faz justamente o contrário e navega entre diversos gêneros e referências de outros artistas. De início, um caminho como esse pode parecer arriscado, propício para a artista se perder e não estabelecer uma identidade coerente. Mas se tem uma coisa que uma das maiores artistas da indústria não faz em seu oitavo álbum de estúdio é cometer erros de principiante.
Além de olhar para fora para identificar possíveis caminhos e referenciar outros trabalhos, ela também mergulha profundamente em si mesma. Assim, Taylor não procura identidade e originalidade em ambientes externos, mas as constrói a partir do que tem essencialmente dentro de si. E consciente do caminho que escolheu, inteligentemente também opta por não inventar demais fora da sua zona de conforto e aproveitar ao máximo seus pontos fortes.
A mistura, que ainda contou com a majestosa participação de Aaron Dessner (The National e Big Red Machine) nas composições e produções de quase todas as músicas, resultou numa combinação única: um álbum que não é tão fechado no folk/country quanto imaginamos que seria quando foi anunciado; nem que permanece abrigando sua essência no pop, como podemos pensar ao ler o nome de Jack Antonoff nos créditos de algumas faixas ou ao ouvir a primeira música. E ainda bem, porque partir disso, com suavidade e consistência, Swift nos convida a ir além com folklore. Além até mesmo do que a própria fez e nos apresentou em seus últimos trabalhos, nas super definidas e contrastantes personas de Lover (2019) e reputation (2017).
Neste cenário, Taylor estabelece um porto seguro infalível: suas letras. Conhecedora da habilidade que tem nas mãos, ela sempre nos presenteou com composições extraordinárias. Mas aqui, ela explora ainda mais sua escrita e volta no tempo para relembrar junto de nós detalhes da sua infância, como faz na melodiosa seven, e conta histórias em 3ª pessoa, como faz na inteligente e divertida the last great american dynasty. Ela também cria universos e dá vida à personagens, às vezes até inter-relacionando as histórias, como é feito em august, betty e no primeiro single do álbum, cardigan.
Apresentando a história de um triângulo amoroso adolescente – parte de sua matéria-prima de sempre -, estas três últimas faixas são exemplos do que a artista faz quando alguma canção ameaça cair na mesmice. Além de explorar as perspectivas individuais dos seus personagens, ela também muda um pouco seu estilo de escrita. É assim que a compositora escreve os versos soltos e ousados de cardigan, canção que também poderia facilmente ter nascido das mãos de Lana Del Rey.
Outra saída que Taylor encontra junto de seus produtores é incrementar nos outros elementos que constituem as canções, principalmente os instrumentais. Com suavidade, pianos, violinos, violas, gaitas, guitarras e arranjos vocais trabalhados abraçam as músicas, graciosamente dando o rumo exato que elas precisavam. E além de agregar mais riqueza ao álbum, é através desse suporte instrumental que a artista também consegue explorar suas raízes country, dosando o que conhece do gênero em faixas como betty. Arranjos eletrônicos e modulações de voz – costumeiramente fundamentais no pop de Swift – são ainda mais delicados e pontuais, como ouvimos em august. Assim, o precioso e aconchegante caráter acústico de folklore é preservado.
As narrativas são construídas por viagens que Swift faz pelo tempo, sem linearidades e dominadas pelo gosto agridoce da nostalgia. Mas ocasionalmente, mesmo ainda relembrando o passado, nos refrescamos – ainda emocionados – voltando ao presente. É o que acontece em faixas como a impecável exile, resultado da colaboração de Swift com a banda Bon Iver.
A letra é de Taylor e Justin Vernon, vocalista da banda com quem a cantora também divide o protagonismo dos vocais, e apresenta uma epifania desencadeada no momento em que o eu lírico olha para um antigo amor. Embebida em melodias de um piano pesado e contracantos atmosféricos, a canção soa como uma irmã mais dramática e robusta do delicioso hino folk de 2006, Falling Slowly.
E falando das referências e letras de folklore, a ultra-metafórica my tears ricochet é a que mais intriga e chama a nossa atenção. Numa interpretação literal, a faixa compara o término de um namoro a um enterro numa intensidade à la Melodrama de Lorde, e pode ser difícil de engolir, soando exagerada demais até mesmo para os amores de Taylor Swift. Aí, explicações e teorias surgem: possivelmente, a partir de uma analogia, a faixa trata sobre o que a artista viveu nos últimos anos com sua ex-gravadora, relacionando-se também com outras canções.
Se algumas intenções de folklore ficam subentendidas, outras Taylor entrega de primeira, e como ela alertou no encarte do álbum – e exatamente como um folclore deve ser -, nem tudo seria especulação e história ficcional. Ela continua cantando sobre seus processos internos, que dessa vez parecem se abrigar na séria e imponente mad woman, e abordar de forma mais explícita a situação delicada que viveu com sua ex-gravadora.
Com a voz pesada, Taylor relata: “Estou dando meu tempo, dando meu tempo/Porque você tirou tudo de mim/Vendo você ascender, vendo você ascender/Sobre pessoas como eu”. Sem rodeios, dá o recado: “Eles dizem: siga em frente, mas você sabe que eu não vou” e se permite verbalizar com gosto um “Vai se foder, para sempre”.
Nesta mesma faixa, Swift também encontra espaço para retratar situações e criticar esteriótipos sexistas recorrentes na sua/nossa existência enquanto mulher – que, fazendo um recorte, recaem com ainda mais peso sobre as mulheres negras. Afinal, quem de nós nunca ouviu algo parecido com “Ninguém gosta de uma mulher louca/Que pena que ela enlouqueceu” ao se impor com um pouco mais de veemência? E diante disso, numa tentativa de legitimar seus próprios sentimentos e defender a racionalidade de suas reações, respondeu, às vezes mentalmente, com um “Você fez ela ficar assim”?
Os temas que Taylor aborda e a forma como ela aborda são o que fazem folklore ser tudo o que é. Eles pedem profundidade, e Swift se dispõe construí-la, criando mais um aspecto fantástico no disco: a verossimilhança, que se manifesta especialmente nos retratos sinceros que faz das muitas reações e comportamentos que podemos apresentar diante do amor.
Em canções íntimas, que nos aproximam e abraçam nossas vulnerabilidades, complexidades e contradições, nos identificamos. Seja com a persona um pouco insegura quando apaixonada que é apresentada na charmosa mirrorball, com a saudosista e romântica que canta invisible string, ou ainda com a personagem racional, autoconsciente mas ainda disposta a vivenciar a completude do amor que é retratada em peace.
Você pode se enxergar também no eu lírico da envolvente this is me trying, que busca perdão e recuperação. Ou na melindrosa, nervosa e arrependida illicit affairs. Ou na personagem intensa mesmo conformada que canta junto ao piano de hoax. Ou com mais de uma ao mesmo tempo. Ou até mesmo com todas elas.
Isso porque não há superficialidades preguiçosas nos amores do folklore de Taylor Swift. Com um realismo suave e gentil, eles nos lembram que mesmo as relações mais maduras ainda são complexas, acompanhadas de arrependimentos, desencontros, tentativas e decepções. As mais saudáveis também são permeadas por (quebra de) expectativas, perdões, esperanças e, às vezes, até mesmo pontos finais – exatamente como é na vida real.
Tamanha identidade e profundidade que folklore apresenta é resultado de uma alquimia. Entre as 16 faixas, encontramos um pouco de cada aspecto da experiência que a artista adquiriu nos últimos anos: o amadurecimento ainda apaixonado de Lover, pinceladas da ousadia de reputation, composições e produções tão boas quanto as de 1989, e uma sonoridade que refina o que existe de melhor em RED. E à isso se deve a sensação curiosa de familiaridade que o álbum traz, mesmo em meio a novas posturas, intenções, territórios e aspectos que a artista nos apresenta.
É por essas construções também que nos envolvemos e nos emocionamos, ainda que às vezes não tenhamos vivenciado pessoalmente aquilo que está sendo retratado na canção. Também identificamos sentimentos, que sequer repararíamos que tínhamos ou que não saberíamos descrever. Mas Taylor sabe, e aponta gentilmente.
Ainda brincando com opostos, é mais ou menos assim a experiência com o folklore de Taylor Swift: mesmo com o frio na barriga vindo da imprevisibilidade do crescimento, do autoconhecimento, da descoberta de um novo lugar, novas pessoas e novos sentimentos, sentimos uma ponta acolhedora de paz e conforto. Sabemos que estamos acompanhados por alguém que reconhece nossas complexidades e, talvez o mais importante: nos sentimos em casa.