Faith: George Michael cresceu

Leonardo Teixeira

Na última noite de Natal, uma triste notícia interrompeu o clima festivo: George Michael morrera em sua casa, aos 53 anos de idade. Fechando um 2016 cheio de enormes perdas na música, o adeus veio amargo depois das tretas que o britânico travou para manter sua imagem nas últimas décadas de vida. O falecimento, no entanto, aconteceu poucos meses antes dos 30 anos de Faith (Columbia Records, 1987), seu primeiro álbum solo. O aniversário nos lembra que o fim complicado pouco importa, considerando o percurso de um artista que já começou próspero.

O single de estreia já sugeria o sucesso. “I Want Your Sex” é simplesmente a venda da sexualidade de George, o que veio bem a calhar no estabelecimento de certa maturidade em sua personalidade artística. Grande demais para o som adolescente do Wham! — duo extremamente bem-sucedido que mantinha com o amigo Andrew Ridgeley desde 1981 —, ele buscava um respeito que os hits grudentos que compusera até então não haviam lhe rendido.

Para o pulo do gato, o artista usou do funk descarado de Prince na faixa e das possibilidades que a MTV lhe dava para mostrar que havia crescido. Compôs e produziu toda a tracklist do álbum, exercendo uma autonomia totalmente nova em sua carreira. Além disso, assumiu a pinta de galã que ensaiara em vídeos anteriores, como “Careless Whisper”, vestindo jaqueta de couro e óculos aviador. Homão da porra.

Galãs lindos demais: George em 1988, durante a Faith World Tour (Rob Verhorst/Redferns)

A nova persona reunia signos clássicos da masculinidade na cultura pop: a sensualidade bruta de Marlon Brando em Uma Rua Chamada Pecado (1951), o carisma de James Dean e o rockabilly (subgênero do rock com expoentes como Elvis Presley e Buddy Holly). Liricamente, a lógica é a mesma: uma libido não tão desconcertante como a do cantor de Minneapolis e nem tão progressista quando a de Madonna. Mas interessante o suficiente para se tornar uma febre mundial.

Em momentos como a gospel “Father Figure”, George usa da reafirmação de sua masculinidade na criação de uma imagem mais adulta, cravando seu trabalho num passado retrógrado. Mas a alegoria levantada para criação desse personagem é tanta que exerce o efeito contrário, soando inspirada nas ilustrações de Tom of Finland — artista que foi pioneiro no século XX ao retratar o erotismo e a pornografia homossexual sob ótica hiper masculinizada.

Além de Michael, Freddie Mercury também flertaria com o homoerotismo fetichista de Tom of Finland (Reprodução)

Ainda que influenciado pelo cinema e música feitos nas décadas de 40 e 50, Faith é a cara dos anos 80. A década perdida foi um tempo de efervescência na cultura popular e o artista pegou carona nesse fenômeno criando um universo audiovisual apenas seu, algo que, dentre os grandes cantores masculinos, só havia sido feito por Michael Jackson.

O tom crítico aplicado em temas como o thatcherismo (ideologia defendida pelo Partido Conservador Britânico e Margareth Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido durante os anos 80) revela o espectro da atualidade do disco, levando em conta a importância do tema em 1987. Política e injustiças sociais seriam tratados de forma menos didática em “Shoot the Dog”, faixa de 2002 que deu o que falar.

Mas a longevidade de George Michael a não é mera nostalgia. “One More Try”, talvez a faixa mais complexa e tematicamente moderna do álbum, expressa a consciência do mal que uma relação abusiva causa ao eu-lírico, que implora que o parceiro o abandone, já que ele mesmo não consegue sozinho.

Pé no chão é elemento chave no discurso do cantor, que tenta mostrar seu amadurecimento para além da estética e discute com sinceridade temáticas que até hoje motivam composições mundo afora.

É também bastante contemporânea a mão que ele tem no que muitos chamam de blue-eyed soul (termo usado para designar o R&B e o soul feito por artistas brancos). De Amy Winehouse a Justin Timberlake, a incorporação de elementos da cultura negra por pessoas brancas, ainda que controversa, já rendeu ótimos frutos. O debut de George foi o primeiro deles a quebrar a barreira do gênero pop e ser universalmente aceito como um amontoado indiscutível de música boa.

Reunindo o que os anos 80 tiveram de melhor, Faith é um registro bastante datado. Mas não de uma forma ruim. Longe da cafonice do Wham!, o intérprete de “Monkey” conseguiu exercer sua criatividade e ainda assim agradar ao público da época, que cada vez mais exigia um grande espetáculo. E foi o que George Michael lhes ofereceu. O resultado é um grande registro de seu tempo que consegue, três décadas depois, soar novo e fresco.

Posteriormente, vendas mais modestas e problemas com a justiça e a imprensa embaçaram a imagem que o cantor tão minuciosamente construiu com o disco. O esforço que ele exerceu nos últimos anos em vida foi exatamente para provar que o garoto talentoso de jaqueta, óculos e violão na mão que conhecemos em 1987 ainda vivia e tinha muita a dizer.

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