A cineasta, co-roteirista do comentado Democracia em Vertigem, fala sobre sua experiência com a anorexia que motivou Êxtase, seu primeiro longa-metragem e sobre a indicação ao Oscar 2020
Raquel Dutra
Semana passada, estreamos uma novidade aqui no site: o Persona Entrevista. O quadro ainda tem o gostinho da nossa cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo porque traz para seu início conversas que tivemos com alguns diretores de filmes exibidos no festival. A abertura se deu com João Paulo Miranda Maria, diretor de Casa de Antiguidades, filme que representou o Brasil no Festival de Cannes este ano.
Dessa vez, o Persona recebe Moara Passoni, roteirista de Democracia em Vertigem que, depois de nos representar entre os Melhores Documentários do Oscar 2020, estreia na direção com Êxtase, seu primeiro longa-metragem premiado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) na Mostra SP deste ano. Ela conversou conosco sobre o longo processo de criação do filme que, brincando com a linha tênue existente entre a ficção e a realidade, atravessa a experiência da própria com a anorexia e dá voz a relatos de muitas outras mulheres que participaram de sua concepção compartilhando suas vivências.
“O cinema é uma arte coletiva”, sublinha Moara Passoni, que por aproximadamente dez anos pensou e executou Êxtase, seu primeiro longa, junto de muitos colaboradores, os quais ela fez questão de nomear durante a entrevista. Curiosamente, o processo de desenvolvimento do filme é completamente oposto à forma como a anorexia, seu tema, se desenvolve em quem a sofre, que para a diretora, é num local de extrema solidão, narcisismo e apartamento entre a pessoa que padece do distúrbio e o mundo.
Por isso é que tudo de Êxtase foi muito bem pensado e “ruminado”: “eu não conseguia reconhecer o que eu havia vivido nos documentários e filmes sobre anorexia que tive acesso. Eles me pareciam apresentar uma visão externa do processo e, na maior parte das vezes, estigmatizada, espetacularizada, ou vitimizadora, que pouco ecoava minha experiência”. A diretora compartilha que uma de suas grandes inquietações era comunicar para quem estivesse ao seu redor o que estava acontecendo com ela e encontrar pessoas abertas à de fato escutar o que estava acontecendo, situação que se tornava “torturante” e parecia fazer com que ela mergulhasse cada vez mais no “labirinto da anorexia”.
Seus objetivos eram tão claros quanto desafiadores: “encontrar no cinema uma linguagem que desse conta de narrar essa experiência no cinema” sem se transformar num “filme de informação” propriamente dito, mas incluindo conhecimento sobre esse tema tão importante de outras formas. Assim, Moara teve de empregar toda a sua experiência, que vai desde uma graduação em Ciências Sociais pela USP e em Comunicação das Artes do Corpo na PUC, passando por mestrados em documentário na Unicamp e FGV e doutorados incompletos em filosofia até chegar aos dias de hoje, em que a diretora estuda roteiro e direção num mestrado prático da Universidade de Columbia em Nova York.
Desde suas concepções mais iniciais, o filme é realmente fruto de uma experiência coletiva, como conta a diretora: “Eu montei um grupo (…) e trazia ideias das cenas, das situações e dos espaços que eu tinha vivido, e a gente começava a mergulhar nesse universo da anorexia coletivamente. Deste momento, Moara afirma que surgiu um primeiro filme, que não foi lançado porque não era exatamente o que ela desejava para comunicar as vivências da anorexia: “Aquele era um filme em que o corpo era o grande centro ausente da narrativa. (…) Ele trazia espaços vazios e uma voz que narrava a experiência dessa personagem. No entanto, o que comecei a perceber é que era um filme muito mais sobre a “utopia” da anorexia, de eliminar o tempo e o corpo. Eu queria trazer uma outra dimensão que é tão fundamental quanto essa: o quão violento é você lutar para eliminar o corpo e transforma-lo em uma ideia, o quão violenta pode ser a divisão “corpo-mente” se você começa a levá-la ao pé da letra”.
Principalmente, essa obra inicial manifestava um caráter “pacífico” sobre a anorexia que Moara não desejava retratar. Ressaltando que “a anorexia não é pacífica, porque tem uma luta brutal contra o próprio desejo”, ela complementa a importância desse aspecto na construção do filme: “Eu acho justamente que foi o desejo e a abertura pro outro que me salvou (…). Se eu não tivesse outro impulso do desejo eu acho que eu não haveria nem superado a anorexia.” Assim, a decisão foi concebê-lo numa pulsão entre “o desejo e o controle, o delírio e a realidade”.
Depois dessa experiência, ainda surgiu uma outra possibilidade junto de Petra Costa e a diretora de teatro Martha Kiss Perrone: “Passamos cinco dias me filmando no presente, enquanto eu reconectava com as memórias e espaços daqueles dias. Por um lado foi extremamente potente poder colocar meu corpo na narrativa. Mas ao mesmo tempo, aquele me parecia um ‘um outro filme’, que talvez um dia eu realize (…) sobre a superação deste padecimento”, compartilha a diretora, ressaltando que neste primeiro momento era necessário abordar “a entrada e a turbulência da anorexia”.
Todas as experimentações culminaram numa certeza sobre o que viria a ser o Êxtase: ela traria “o corpo pro filme”, ideia à qual a diretora resistiu muito, porque para ela, este seria um filme que iria, de certo modo, “contra” o distúrbio. Não era mais um filme “pele-ossos-visão” – o que ela denomina como a “utopia” da anorexia –, “mas começava a ser um filme pele-ossos-visão-estômago-
Passoni enxerga que essas características singulares da sétima arte vêm de “um lugar muito estranho de você poder olhar o outro como se fosse você, e realmente se transpor para a experiência dele (…) E poder se colocar no lugar do outro é poder de algum modo compreendê-lo, humanizá-lo”. A partir disso, a diretora trabalhou para colocar o espectador no ponto de vista de quem padece de anorexia, “inclusive em um mundo que vai se tornando cada vez mais claustrofóbico nesse processo”.
Na hora de tratar da anorexia em si, a cineasta compartilha que seu o cuidado maior foi em “não construir um espetáculo” que, segundo ela, é muito fácil de surgir porque “a anorexia tem uma morbidez e uma violência que é muito atraente. E essa provocação do olhar, como diz Eric Bidau, parece ser constitutiva da própria anorexia. Talvez por isso ela seja tão desafiadora. E talvez, por isso, ela seja também uma rebeldia contra os lugares de poder de nosso mundo”. Assim, humanizar as experiências era algo muito importante, porque, como ela diz, só humanizando a gente é capaz de enxergar.
A questão definir Êxtase entre um documentário ou uma ficção não era uma preocupação. Toda a atenção de Passoni era direcionada à construção da linguagem e aos seus objetivos, e nisso, ela conta que “A ficção fez parte quase de uma maneira orgânica porque justamente você vai entrando nesse delírio [da anorexia]”. Tendo em vista que o filme “não é um documentário ‘stricto sensu’, a diretora tensiona os postulados do gênero ao entendê-lo como “um processo de descoberta, de investigação desse imaginário”.
Mesmo nas fases finais, o processo não foi linear, e por conta do baixo orçamento, ela conta que a equipe não conseguiu filmar e editar o quanto gostaria. “A gente começou a chegar na forma final do filme usando imagens da internet para compor as cenas (…). Também começamos a encontrar a narrativa de uma maneira mais orgânica construindo o roteiro a partir da própria montagem, e foi a partir destas experimentações na ilha de edição que saiu a versão final do nosso roteiro”.
Assim, Êxtase foi sendo construído concomitantemente, num processo de “montar, escrever o roteiro, filmar, montar mais, reescrever o roteiro, fazer o desenho de som, filmar mais…”, informa a diretora. Moara ainda ressalta a limitação de recursos, que muitas vezes forçava a equipe a encontrar soluções inusitadas e criativas para os impasses do filme.
Gentilmente abrindo suas suas memórias sobre o período em que viveu a anorexia, Moara compartilha o que sentia na época: “É uma sensação de achar que você não pode contar com ninguém, então você se fecha. Nem do alimento você precisa mais. E esta sensação de não depender de nada, de ninguém, começa a te dar poder. É uma sensação bizarra de plenitude (…)”.
Para ela, a o distúrbio é perigoso porque desenvolve na pessoa a sensação de “não precisar mais nem do alimento para sobreviver, você começa a virar uma espécie de super heroína e começa a entrar no delírio de que não precisa trocar com o mundo, com o outro. Além disso, inanição deixa os sentidos muito vivos. Por fim, você parece perder conexão com o corpo, com o mundo concreto” e conclui que neste sentido, a anorexia se revela como uma experiência extremamente autoritária.
A diretora ainda divide outra lembrança profundamente pessoal sobre suas dificuldades convivendo com o distúrbio: “A maior dor não era a anorexia, era sair da anorexia. Quando percebi o quanto os outros me assustavam, quando eu percebi que sentia fome mas não queria comer. Comer era admitir minha fraqueza, minha incompletude. E eu temia começar a comer e nunca mais parar. É como se, de repente, percebesse que tinha um buraco negro dentro de mim”.
Diante do apartamento do mundo que tirou dela a experiência da vida em sociedade e aspectos mais simples da nossa existência enquanto ser humano, ela relata que brotava o questionamento: “o que eu faço com esse bando de gente? (…) Eu não sei quantas horas as pessoas dormem, eu não sei quando elas escovam os dentes, eu não sei quando elas conversam, eu não sei como elas fazem para lidar com a turbulência que o outro gera nelas, com o encanto que o outro gera nelas, eu não sei como elas fazem para lidar com o fato de que o outro não “obedece” nossas vontades e muitas vezes nos frustra, eu não sei como viver admitindo pra eu mesma que preciso do outro… como eu faço para voltar para esse mundo?”.
Nessa profundidade, é possível notar um caráter universal das angústias e vivências de mulheres inseridas em sistemas patriarcais, que se manifestam de formas diferentes em cada uma de nós. Esse aspecto é visível especialmente quando Moara fala que era importante compreender o que as garotas “ganham” com a anorexia, porque, no caso dela, a questão não era findar sua vida, mas sim “encontrar uma maneira de viver”. Para ela, o distúrbio pode ser visto “como um apaixonar-se pela ideia da beleza clássica, pela ideia cultural de perfeição, harmonia, e levar isso às suas últimas consequências”.
Encarando as reverberações do distúrbio profundamente, a diretora afirma que sua dimensão psicológica vai muito além da estética, indo em direção à uma “paixão por um ideal”: “não que eu queria ser ‘bonita’ (…) eu queria ser o belo (…). Só que o ideal do belo é inatingível. (…) E na anorexia era essa luta contra eu mesma, contra meu próprio corpo. Era eu tentando transformar tudo isso em uma grande ideia… Transcender a finitude do corpo”.
Moara ainda relaciona essa experiência psicológica com o processo de criação de sua arte: “O que eu realmente tive que lutar contra pra fazer o filme foi com o meu próprio narcisismo. Reconhecer “caramba, esse é meu filho e ele tem seus limites. Eu preciso parar de achar que ele tem que ser perfeito. Tenho de aprender a amá-lo em suas imperfeições, inclusive por conta delas…”.
Ela ainda pontua que se tivesse permanecido nesse jogo, nunca terminaria o filme e que por isso uma de suas aprendizagens foi realmente ir contra a “violência, a tortura e a auto-destruição que narcisismo produz”. Identificando mais uma vez relações entre a pessoalidade de suas experiências com cenários mais universais, ela reflete: “acho que muitos artistas inclusive sentem essa tortura, porque vivemos atormentados, de um modo ou de outro, pela imperfeição do que criamos”.
E não teria como encerrar essa entrevista sem perguntar como a equipe de Democracia em Vertigem se sentiu representando o cinema brasileiro, que passa por um momento tão complicado, no Oscar ano passado. Moara responde: “Quando fomos nomeados ao Oscar, senti quase como se fosse uma vitória da democracia. Claro, era um filme brasileiro num lugar simbólico de legitimação e poder bastante importante, e a aceitação do filme nos EUA foi impressionante, inclusive, porque muita gente viu no processo democrático brasileiro semelhanças com o que está acontecendo em diversos lugares do mundo”.
A partir das suas experiências com cinema fora do país, Passoni relata: “no geral, eles sabem pouco sobre cinema brasileiro. Eles conhecem muito Cidade de Deus, Diários de uma Motocicleta, eventualmente Glauber, recentemente Bacurau (…). Mas é muito difícil eles saberem mais do que isso. Tragicamente, parece que não fazemos parte da geografia política e simbólica deles”. Por conta desse distanciamento cultural é que levar a história do Brasil “que poderia falar algo também para eles e sobre a democracia deles” se tornou algo ainda mais desafiador e importante para a equipe do filme, como conta a cineasta.
Para o futuro, Moara também planeja o lançamento comercial de Êxtase, que no momento percorre festivais de cinema ao redor do mundo em exibições on-line. Os moldes pandêmicos inclusive tornam-se curiosamente irônicos quando pareados à própria experiência do filme e com as expectativas da diretora: “O filme veio ao mundo de uma forma virtual, e essa virtualidade fez parte da minha experiência com a anorexia. E quando eu achei que finalmente ia dar concretude e fisicalidade pra essa experiência na tela, tirando ela de dentro de mim, isso não aconteceu” brinca Passoni, levando com bom-humor os planos frustrados que todos encaramos em algum momento no ano da pandemia e almejando o lançamento que deve acontecer no segundo semestre de 2021.