O diretor de Madeira e Água conta como foi filmar em dois continentes e ter a própria mãe como protagonista
João Batista Signorelli
Entre filmes premiados em Cannes e pré-candidatos ao Oscar, a 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo trouxe uma grande amostra do Cinema mundial em 2021. Em meio a tantos lançamentos badalados que ainda vão dar muito o que falar, também surgiram muitas pérolas escondidas que também foram dignas de atenção, e Madeira e Água certamente é uma delas. Contando a história de uma mãe que busca se encontrar com seu filho distante, o diretor alemão Jonas Bak levou seu filme de Berlim para festivais no mundo todo, e vem agora ao Persona Entrevista contar como foi a produção de seu primeiro longa-metragem.
De estudante de Cinema na Escócia a cinegrafista e diretor freelancer em projetos comerciais, Jonas abandonou os trabalhos em Londres para se mudar para Hong Kong com sua parceira, que viria a se tornar também sua produtora. Lá foi onde a ideia para o longa surgiu pela primeira vez, e, influenciado por sua experiência distante de sua família e da Alemanha, seu país de origem, ele focou em escrevê-lo por mais de dois anos.
Quais foram as suas principais influências ao construir essa história?
Jonas: “Eu diria que minhas referências principais foram mesmo minha própria história, a história da minha mãe e das pessoas (…), os lugares à minha volta, Hong Kong, meus sonhos, minhas alegrias e medos, talvez mais meus medos que minhas alegrias, e apenas a vida eu acho, a realidade se quiser chamar assim. (…) Mais do que dizer: ‘Eu copiei o estilo de Kiarostami ou Tsai Ming Liang…’. Há muitos paralelos aí, e eles são definitivamente diretores que eu admiro, e que, talvez, eu penso, influenciaram meu trabalho, moldaram como eu vejo filmes, como eu abordo o visual, e como eu vejo a vida. (…) Se você quiser algumas referências fílmicas, Kiarostami, Tsai Ming-Liang, Angela Schanelec… Eu acho que essas pessoas me influenciaram muito. Wong Kar-Wai talvez, quando eu estava em Hong Kong.”
A história de um homem jovem que está longe de casa e um pouco perdido na vida e na cidade grande lhe veio naturalmente. Desse ponto de partida, Jonas olhou para trás, para sua mãe, e com isso veio a preocupação de que ela, viúva, vivendo por conta própria e próxima da aposentadoria, estivesse se sentindo sozinha. Contar essa história de um filho pródigo a partir da perspectiva da mãe acabou tornando sua proposta muito mais interessante, além da possibilidade de, caso ela aceitasse o papel, de fazer algo com ela, e de reaproximar-se com ela.
Sua mãe sempre foi sua primeira opção para o papel? Como foi trabalhar com ela?
Jonas: Eu acho que vi e procurei outras atrizes, mas eu tive um jeito legal de meio que provocar a minha família (risos) em fazer isso, dizendo que nós íamos fazer um pequeno filme. Começou como um documentário familiar e, discretamente, eu fui construindo a partir daí. (…) Se eu me lembro, ela nunca disso não no início, então ela estava sempre aberta para isso. Foi difícil, talvez, encontrar um jeito de trabalharmos juntos, de resolver essa questão da atuação… Bem, nós encontramos um caminho, e eu penso que ela foi definitivamente minha primeira opção.
Jonas diz não ter realizado o filme com a intenção de aproximar-se mais da ficção ou do Cinema documental. Sua maior intenção era fazer do filme algo verdadeiro e honesto. “É real, apesar de não ser documentário”, diz o diretor, que trabalhou com atores não profissionais, ao mesmo tempo que usou o roteiro que escreveu apenas como uma base para orientar as gravações. Com uma equipe reduzida, todos viveram a história como uma pequena família, e a experiência se tornou uma jornada para todos eles.
Na maior parte das cenas do filme você trabalhou com uma alta distância focal da lente, de modo que as cenas tiveram uma grande profundidade de campo, e com tudo parecendo mais próximo. Como você chegou a este visual para o filme?
Jonas: “Foi, talvez, a ideia de que, a tensão e o drama estão fora dos limites do frame. No filme, nós estamos bastante próximos da mãe e nós sentimos um pouco a densidade e a estreiteza das ruas de Hong Kong, (…) essa sensação de peso como uma experiência sensorial da cidade. Ao mesmo tempo, foi uma aproximação um tanto fotográfica. (…) Eu também não queria apenas capturar a imagem da minha mãe e estar próximo dela, eu também queria dar para a audiência mais do que isso, é um pouco de generosidade também, mostrar mais da cidade. (…) Como você disse, nunca há profundidade de campo rasa, de modo que as coisas ficariam desfocadas no fundo. Era importante mostrar tudo, e tudo era parte da história. A aproximação fotográfica que eu acabei de mencionar, a sensação fotográfica era para capturar isso bem rigorosamente no enquadramento, para que ele ficasse como tirar uma foto, é como algo nostálgico, você quer congelar o momento. (…) Na Alemanha foi como congelar memórias antigas, em Hong Kong, foi congelar esse momento bastante especial, mas também dar mais espaço para ele.”
Há essa bela fala próximo ao final do filme em que sua mãe diz que ela não reza para pedir a Deus que mude as coisas, mas para que ela seja forte o suficiente para lidar com qualquer coisa que viesse a acontecer. De onde veio essa ideia?
Jonas: “A ideia foi de ter essas duas personagens falando sobre as similaridades espirituais entre o ocidente e o oriente. A cartomante e o templo taoísta versus a fé cristã dela, e elas encontram alguma espécie de base semelhante, algo para realmente falar sobre. Eu apenas perguntei para minha mãe: ‘Você reza? Você ainda reza?’, pois eu sabia que ela rezava quando eu era mais jovem. Ela disse algo similar ao que está no filme, basicamente que ela não se assustava com o que a vida jogava nela, ela apenas esperava ter força, e ela pedia por força. Eu acho que foi uma linda fala. (…) Foi uma fala difícil de entregar, e nós ensaiamos muito essa cena porque, como você disse, ela se destaca no filme, e poderia facilmente ficar brega. (…) Eu tive que fazer um figurante entrar no trem no meio na fala, para que não parecesse artificial, montada. (…) Foi uma fala verdadeira que veio do coração dela.”
Anke Bak, a mãe do diretor, assistiu ao filme com público apenas uma vez em Berlim, mas não quis subir ao palco. Sempre recusando os convites para ir a festivais, ela diz já ter “passado para frente com esse filme”. Mas a relação dela com o filme não parece ser unicamente negativa: durante o processo de edição, Jonas mostrou alguns cortes do filme para ela, e foi a versão de New Space Music de Brian Eno, que enfatizava um sentimento meditativo e de calma, que rendeu uma reação positiva, deixando-a bastante feliz. A composição de Brian Eno permaneceu na trilha sonora.
Como você escolheu essa música específica?
Jonas: “Eu tentei muitas coisas com o compositor. Tentei, talvez, intelectualizar a música para entender o que funcionava, porquê e onde, e experimentar muito. Algumas vezes estávamos felizes, outras não. (…) O processo de edição foi muito longo e um tanto assustador porque nós não sabíamos se haveria um público para o filme com o covid. Com todos nós trancados, eu estava tentando tantas coisas diferentes e não estava nunca satisfeito, e eu ouvia muita música desse tipo, apenas para mim mesmo, e para me sentir melhor também. Eu estava ouvindo a música e ela me fez sentir tantas coisas. Eu a conhecia de antes, quando era mais jovem, (…) ela me fazia sentir que eu fazia parte de tudo, e tudo estava bem. E isso era como a experiência da mãe. (…)
Então eu apenas coloquei a música nessa ou naquela cena, e, obviamente, o apego emocional ajudou a elevar, e algumas pessoas disseram que elevou demais, e que eu não precisava realmente da música. Para mim, exatamente pelas coisas terem conectado, funcionou, e eu mantive e mostrei para o compositor pedindo-o para fazer algo similar. Mas ele disse: ‘eu não consigo, não sei como ele criou esses doces sons metálicos’. Ele disse que não sabia como ele fez nos anos 90 com instrumentos analógicos, e nós apenas a mantivemos. Nós não podíamos mostrar esse filme em um festival sem os direitos autorais, e Brian Eno e seu empresário estavam felizes em cedê-los para festivais. (…) Mas ficou um pouco mais complicado quando foi sobre os direitos de distribuição, e (…) a produtora teve que negociar um pouco porque eles entenderam que era um projeto difícil, pessoal, e não esperavam que estaria vendendo. Eu, pessoalmente, não esperava esse tipo de sucesso com o filme. Eu esperava passar em alguns cinemas ou festivais, mas daí nós conseguimos uma distribuição nos Estados Unidos, e nós realmente tivemos que pedir (…) os direitos para tudo, (…) mas ainda bem que tudo deu certo.”
Como foi a recepção do filme no Festival de Berlim?
Jonas: “Berlin foi majoritariamente digital, e houveram exibições ao ar livre em junho depois do lockdown. Eu já estive na Berlinale antes, é um dos meus festivais favoritos, e foi um pouco amargo estar neste grande festival para ter apenas uma exibição em junho, que não é o período para a Berlinale mais. (…) Eu vivi muito no exterior, então eu não sei muito sobre a indústria cinematográfica alemã, mas as críticas foram mistas no início, e então ficaram um pouco melhores. O sucesso veio, talvez, internacionalmente, as críticas estão muito positivas, então, pensando um pouco, é mais um filme internacional, e na Alemanha é um pouco mais difícil para esse tipo de filme vender, nós não temos um distribuidor aqui, por exemplo. Mas eu não poderia pedir mais.”
Se você pudesse escolher três pessoas, vivas ou mortas para trabalhar em um filme, quem você escolheria e porquê?
Jonas: “Eu escolheria Fred Keleman, (…) Ele é o diretor de fotografia do Béla Tarr, e simplesmente mudou totalmente minha perspectiva sobre o que é Cinema. Eu acredito que os filmes do Béla Tarr e também do Fred Keleman estão em seu próprio nível, são muito mais complexos, talvez uma arte elevada, não sei se esse é o melhor termo, mas são algo a mais. Deixe-me pensar quem mais… (risos) (…) Marilyn Monroe… Marlene Dietrich… Klaus Kinsky. Ele é um ator alemão que trabalhava muito com Werner Herzog. É um absoluto maluco que dá 200% em tudo o que faz. (…) Eu adoraria não apenas trabalhar com ele, mas estar por perto de uma pessoa assim, porque eu sinto que não há mais muitas pessoas assim. Dedicado, mas também escandalosamente louco e inspirador, é maior que a vida. Klaus Kinski, Marilyn Monroe e Fred Kelemen. (risos)”
E se você pudesse levar três filmes para uma ilha deserta, quais seriam e porque?
Jonas: “Freedom (2000), de Sharunas Bartas, porque se passa no deserto e é sobre sobrevivência no deserto, e é o tipo de filme que eu gosto. (…) Eu estou tentando lembrar um filme que me fez sentir muito bem… Sleep Has Her House (2017) de Scott Barley, é apenas sobre sensações naturais, é um filme muito sensorial, é como eu descrevi a música de Brian Eno, me faz sentir parte de tudo. Vamos lá, uma comédia de Hollywood… Boogie Nights (1998).”
Você já assistiu algum filme brasileiro? Se sim, qual o seu favorito?
Jonas: “Sim, mas faz tempo… Eu não vejo tantos filmes, mas há esse épico, (…) Cidade de Deus (2002)? Sim, eu vi esse e foi muito tocante. Eu vi um documentário sobre um terrorista em um ônibus.”
Jonas: “Sim. E quando eu puder ir pra São Paulo verei muitos outros (risos). (…)”
Quais são os seus próximos passos após Madeira e Água?
Jonas: “Eu estou trabalhando em uma sequência de algum modo. Estou finalizando o roteiro e iniciando a pré-produção. Ela basicamente conta a história do filho, e é uma história de amor psicológica. Ele está com uma garota de Hong Kong e ambos estão vivendo uma crise de saúde mental, estão travados com o seu relacionamento e também com suas perspectivas, em Hong Kong. Então eles estão reconstruindo a vida e o amor deles. (…) É sobre alienação cultural e se o amor consegue sobreviver a isso, é sobre precisar de um sentimento de lar, e se é possível viver sua vida no estrangeiro. (…)”
E eu ouvi que você estava planejando uma trilogia?
Jonas: “Sim, mas eu tenho que voltar um pouco atrás e não me precipitar muito, (…) precisamos primeiro ver. Está bom para um segundo filme por enquanto. Também depende se conseguimos voltar para Hong Kong, isso é possível, mas com quarentena e tudo mais o quão fácil ou difícil seria fazer o filme. O interesse de financiamento existe. Então sim, eu tenho uma ideia para uma trilogia. É basicamente uma trilogia de heróis, os heróis da minha vida. Primeiro minha mãe, segundo minha parceira, (…) e então meu pai. O último filme seria uma espécie de história de fantasma sobre o pai que eu nunca tive. É uma ideia vaga, um passo de cada vez.”
Madeira e Água continua sendo exibido em festivais mundo afora, mas ainda não tem previsão de estreia comercial no Brasil.