Henrique Marinhos
Dirigido e roteirizado pelo cineasta português Artur Serra Araújo, Dulcineia conta a história de Hugo, um contrabaixista de jazz que decide tirar um ano sabático e voltar a Porto, sua cidade natal, em busca de equilíbrio e inspiração. No entanto, como o fio condutor da trama, a sinfonia se desenvolve lentamente em torno de um mistério como um pianista famoso, que toca uma música que o protagonista vem escrevendo na sua cabeça há anos, mas nunca conseguiu colocá-la no papel.
A obra está presente na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na seção Perspectiva Internacional, e mistura elementos de romance, suspense e uma quase fantasia. Suas referências também são diretas e bem-vindas, construindo uma base sólida para o desenvolvimento da narrativa: Dom Quixote, que influi o nome da personagem Dulcineia (Alba Baptista) e sua relação com Hugo (António Parra); a própria cultura de Porto, retratada em belas imagens e diálogos; e o jazz, a paixão e a expressão de Hugo e dos demais músicos que ele encontra em sua nova jornada de autoconhecimento.
Apesar do destaque positivo das atuações do elenco principal, a exploração de temas como a identidade e o destino já são complexas por si só. Além disso, a escolha de utilizar questões fantásticas em um personagem enigmático e contraditório, que vive uma crise existencial e artística, contrapõem ainda mais a clareza da narrativa. Infelizmente, essa dinâmica traz um desenrolar não tão fluido e confortável à plateia – mesmo que talvez fosse para ser assim.
Em um esforço notável para relacionar o audiovisual com o roteiro, a construção do longa é muito calma e contemplativa. A fotografia de Tiago Carvalho reúne tons frios e escuros em uma ambiência de desesperança, ressaltando os detalhes dos cenários e dos personagens. E assim como o visual, que muitas vezes impulsiona instrumentos musicais como foco, a composição sonora, com o desenho de som por Pedro Marinho e música por Pedro Marques, também reflete estados emocionais e atmosféricos do protagonista de maneira majestosa, alternando entre melodias suaves, harmoniosas, tensas e dissonantes muito bem aproveitadas pelos atores.
No entanto, a montagem, também por Tiago Carvalho, com planos longos e curtos, não entra em uníssono com toda composição descrita até aqui. Aparentemente comprometida com o mistério por sua alternância, a escolha de diálogos, transições e duração dos planos não potencializa tudo que é ofertado pelas boas atuações, fotografia e som. Talvez sequer fizesse diferença em produções mais curtas, mas em seus longos 90 minutos, a concentração e construção de uma linearidade por parte do público poderiam ter sido facilitados, ainda considerando a obra como uma adaptação pelo diretor.
Dulcineia como um todo, na verdade, é uma ode à Música como Arte e parte da vida dos personagens. Apresentada através do contrabaixo, do piano, da guitarra, da bateria e da voz, a orquestra audiovisual transita entre pontos de muita beleza e contemplação e uma tensa confusão expressa pela busca de si mesmo, mas também pela organização, intencional ou não, de cenas contrapostas como entraves para a fluidez.
O filme é, sem dúvida, uma produção com profundidade e ricas referências, dialogando com a literatura, a Música e o Cinema, mesmo que com uma estética representativa de autoconhecimento não tão única assim. O questionamento dos limites das escolhas e desejos do Hugo causam o frio na barriga que só o conhecimento de si mesmo pode provocar – e que bom ser assim.