Aviso: o texto contém spoilers do seriado britânico de ficção científica que finalmente ganhou um orçamento decente
Íris Ítalo Marquezini
Não é surpreendente falar sobre Doctor Who para alguém alheio à série e a pessoa se impressionar com o número de episódios. No ar desde 1963, e com décadas de influência na cultura pop, o seriado televisivo de ficção científica continua a encontrar novos fãs curiosos para saber como uma cabine telefônica policial – a TARDIS – pode ser maior por dentro. Os últimos três especiais da série não são exatamente receptivos para quem desconhece aquele universo transmídia gigantesco, mas com certeza confortam os dois corações dos ‘whovians’ que estavam com saudade das frenéticas e criativas aventuras que só os Senhores e Senhoras do Tempo sabem trazer.
Uma das características mais únicas de Doctor Who, desde a década de 1960, é a capacidade do protagonista se regenerar: isto é, trocar a própria fisionomia em situações de risco de vida e mantendo as memórias intactas – uma solução inventada para justificar a troca de atores ao longo da produção. Após três temporadas polêmicas com Jodie Whittaker interpretando a Doutora, o seriado trocou de showrunner, e Chris Chibnall deu lugar a Russel T. Davies – o responsável pelos primeiros quatro anos da Era Moderna da série. Ou seja, trata-se do mesmo produtor que cuidou do reboot de 2005 do seriado , que continua a história da Era Clássica, mas com o objetivo de receber novos fãs, na época, com Christopher Eccleston interpretando o viajante do tempo.
Foi em 2022 que soubemos quem iria substituir a tão criativa, amorosa e elétrica Jodie Whittaker no papel de 13º Doutora. A BBC revelou que Ncuti Gatwa, astro de Sex Education e Barbie, seria a próxima encarnação do personagem. Com uma das cenas de regeneração mais épicas de todos os tempos, essa notícia tornou o emocionante e ambicioso capítulo de despedida de Jodie Whittaker, O Poder da Doutora, ainda mais surpreendente: o rosto que apareceu na tela não era de Gatwa, mas sim de David Tennant.
Com todas as 13 temporadas da Era Moderna explorando e adicionando novas camadas ao personagem do Doutor, os especiais de 60 anos aparecem quase como um fim para a Era Moderna como um todo. O próprio Russel T. Davies afirmou que a próxima temporada, agora sim estrelada por Ncuti Gatwa, será considerada a primeira de uma nova era. Os três episódios especiais, distribuídos pela Disney+, aparecem como um fechamento inesperado para os fãs do que foi uma das séries mais marcantes da última década.
O primeiro episódio dos especiais de 60 anos, A Fera Estelar, além de trazer David Tennant de volta ao papel do protagonista, também marca o retorno de uma das companions mais carismáticas. Donna Noble, interpretada por Catherine Tate, aparece com um marido, uma filha e um cotidiano corrido. Nada tão aventuresco quanto a vida acompanhada do amigo viajante do tempo. A personagem não era vista no seriado desde a quarta temporada, quando ela teve a memória apagada pelo Doutor em um dos finais mais tristes e chocantes na história de Doctor Who.
Com o risco de Donna morrer caso se lembre quem é o Senhor do Tempo, a força desse primeiro episódio está no ritmo certeiro de Comédia entre Tennant e Tate, ambos atores shakespearianos especialistas no assunto, mesmo anos depois de terem atuado juntos. O destaque vai também para Yasmin Finney (Heartstopper), que interpreta a curiosa e carinhosa Rose, filha de Donna. Além disso, o episódio ainda conta com os fofos e impressionantes Meeps, ‘criaturinhas’ que são o foco dessa narrativa. A Fera Estelar começa como uma releitura de E.T. O Extraterrestre (1982) combinado com o memorável capítulo Parceiros no Crime, justamente para subverter ao fim a trama que esperávamos de forma divertida.
É impossível ignorar a importância que a narrativa dá ao tema da diversidade e da mudança. Afinal, é a aceitação que salva o mundo. O acolhimento do novo abre a possibilidade de haver soluções diferentes que driblem a morte e sirvam à vida. Toda essa mensagem fica clara para Rose, que se sente deslocada no começo até perceber que existe uma força bem mais bonita e poderosa dentro de si. Doctor Who é brilhante pelo equilíbrio entre o senso de aventura e a emoção: os personagens podem passar por todos os lugares mais fantasiosos do universo, mas a saudade, culpa e insegurança são sentimentos muito reais.
Nesta perspectiva, a sensação de ver Donna e o Doutor no episódio seguinte, A Imensidão Azul, é a mesma de ler HQs ou ouvir os incontáveis audiodramas do universo expandido. Temos aqui um aprofundamento do que já eram dinâmicas engraçadíssimas e únicas de se acompanhar. Trazer os dois aventureiros amados novamente parece uma jogada fácil para reconquistar os fãs mais antigos, mas se mostra uma decisão acertada, pois prova o quanto a dupla ainda tinha muito a resolver entre si.
Temos aqui uma companion que sabe como é a dor da perda e um Doutor que está exausto de sentir o medo de sempre colocar amizades em risco. Essa soma apresentada e como ela é aplicada na narrativa é de partir o coração, por forçar esses dois personagens a desconfiar um do outro e suspender a vulnerabilidade que tinham entre si até então. Em uma trama que homenageia os filmes O Enigma de Outro Mundo (1982), de John Carpenter, e Alien, O Oitavo Passageiro (1979), de Ridley Scott, os amigos precisam lidar com cópias de si mesmos interpretadas por aliens metamorfos e cruéis.
Um dos destaques deste capítulo é a produção da Wolf Studios Wales. Com locações construídas e complementadas com a tela verde, o cenário claustrofóbico de uma estação no fim do universo se torna imersivo e aterrorizante. Os famigerados efeitos especiais duvidosos de Doctor Who aparecem aqui de forma proposital, beneficiando-se muito da sensação incômoda de que existe algo de errado. O fato do episódio A Imensidão Azul ser montado de forma que o espectador fique tão desnorteado quanto os personagens gerou um dos finais mais desesperadores de todo o seriado.
Quando a terceira aventura de Donna e Doutor chega em A Risadinha, já é possível reparar em algumas diferenças entre as duas versões do Senhor do Tempo interpretadas por David Tennant. O personagem passa por genuínos surtos de raiva ao longo dos especiais e parece muito mais reflexivo do que a atuação mais enérgica e contida vista nas primeiras temporadas da série. Isso se explica pelo fato de ser uma regeneração do protagonista que mantém as mesmas dores e memórias dos acontecimentos que vieram até esse momento. Nesse sentido, esse aspecto poderia ter sido mais desenvolvido, já que nos momentos em que Tennant decide citar os traumas sofridos depois da própria regeneração, vemos uma carga dramática acumulada que fica reservada somente para os últimos segundos do último capítulo.
A Risadinha alcança uma escala que tenta ser tão épica e fantasiosa que, infelizmente, acaba se distanciando bastante da ficção científica na qual os whovians estão acostumados a assistir. O Artesão, originalmente um vilão da série clássica – agora interpretado pelo ator Neil Patrick Harris –, possui poderes praticamente ilimitados e funciona bem como um contraponto ao Doutor, que também poderia ser considerado uma figura quase divina. O embate entre os dois se dá pela inteligência, e não pelo esforço físico, em um duelo de cartas semelhante ao aclamado episódio O Pesadelo de Metal.
É justamente essa quebra de regras da ficção científica que faz A Risadinha extrapolar, por bem ou por mal, os limites do que entendemos por Doctor Who. A fantasia é abraçada para colocar o Doutor em uma posição impotente em que precisa se esforçar até o limite para derrotar o vilão que alterna entre o caricato e o brutal. Essa aleatoriedade do que está por vir resulta em um episódio com cenas icônicas dividindo espaço com um ritmo muitas vezes incoerente. Após momentos extremamente tensos, a audiência é surpreendida com Neil Patrick Harris utilizando seu histórico musical em uma performance ao som de Spice Girls, de forma gratuita até demais.
A introdução de Ncuti Gatwa acontece nesse tom, e a aparição do novo Doutor cura qualquer constrangimento sentido ao longo da narrativa. A presença de ambas versões do personagem ao mesmo tempo na tela se complementam, já que Gatwa aparece pela primeira vez tão frenético, carismático e até mesmo sarcástico quanto David Tennant foi nas próprias temporadas da Era Moderna. Mesmo com uma participação curta, o novo ator já se mostrou alguém com todas as características inteligentes que o Senhor do Tempo exige, mas com uma elegância e estilo só vistos anteriormente no 8º Doutor, interpretado por Paul McGann.
Por mais que as histórias sejam às vezes confusas, os especiais juntos formam uma ótima narrativa sobre abraçar as dualidades presentes no seriado e na vida. Se William Faulkner uma vez disse que o coração em conflito consigo mesmo é o único assunto na qual vale a pena escrever, Doctor Who se prova como uma das melhores séries a fazer isso desde sempre: o antigo e o novo; o diferente e o familiar; e o cansaço e o senso de aventura. É a coexistência como uma aplicação do que é diversidade por definição no gênero da ficção científica, nunca falhando em se reinventar.
Quando o Doutor abraça o lado melancólico de nunca vencer completamente, mas também aceita que fez o que podia, vemos um fechamento emocionante para toda a Era Moderna da série. O protagonista sente um amor tão grande pela vida que acaba preso em um luto constante, incapaz de esquecer o que já se foi. Esse aspecto vale para todas as encarnações do personagem das 13 temporadas, mas aparece agora de forma mais leve e livre no 15º Doutor, Ncuti Gatwa. Chega a ser um ato corajoso dar um final feliz ao personagem sabendo que o ideal seria mantê-lo – com o objetivo de entreter a audiência – em um ciclo de sofrimento que poderia chegar, no fim, a contradizer a mensagem de esperança que Doctor Who sempre foi ótima em ressaltar.
Com essas possibilidades abertas, surge então um espaço para uma boa e velha história de Natal, tradição já conhecida no seriado. A primeira aventura do Doutor de Ncuti Gatwa em A Igreja da Rua Ruby faz o milagre de criar uma aventura ao estilo Charles Dickens sem ser na icônica Era Vitoriana. Parte da razão que faz isso funcionar é a nova companion, Ruby Sunday, uma órfã gentil interpretada por Millie Gibson. A dinâmica entre Ruby e Doutor funciona, pois aqui se tem uma jovem de coração muito puro, mas ignorante para muitos aspectos da vida, e um Doutor muito sábio – e completamente embasbacado com o fato de ela conhecer tão pouco do mundo.
Além de sarcástico, o 15º Doutor consegue ser muito expressivo tanto nas cenas de Comédia quanto nas de Drama. O personagem serve de ‘anjo da guarda’ para Ruby, tal qual vimos o Doutor de Christopher Eccleston ser para Rose Tyler (Billie Piper) no primeiro capítulo da Era Moderna. O especial de Natal protagonizado por Gatwa e Gibson é quase um episódio piloto para o que está por vir na série. Os vilões da aventura – ‘duendes comedores de criancinhas’ – são cômicos e protagonizaram uma cena musical com a colaboração do já conhecido Murray Gold, compositor das trilhas mais icônicas da série.
Doctor Who, em todos os aspectos, encerra um arco iniciado em 2005 com capítulos que tentam ao máximo fazer jus ao legado de décadas do seriado. Em meio a tantos gêneros que foram explorados, muitas abordagens para o protagonista foram inseridas e muitas companions entraram e saíram da TARDIS, deixando saudades nos espectadores e muitas piadas que aparecem para os mais atentos captarem. Mesmo com o tema principal sendo as constantes mudanças da vida que nem mesmo a viagem no tempo é capaz de evitar, muito se mantém.
Ver Ruby entrar na TARDIS pela primeira vez causa uma sensação de conforto enorme. Nem foi preciso ouvir um “‘é maior por dentro” – a reação clássica de qualquer companion. Tudo já está lá. Assistir Doctor Who ontem, hoje e daqui muitos anos, é ter a certeza de que essa série bizarra sobre uma nave na forma de cabine telefônica policial sempre ofereceu bem mais do que prometia. O seriado mostra que ver a vida com um senso de aventura e maravilhosidade é o suficiente para que se sinta dois corações batendo no peito.