A câmera de Delicada Atração como testemunha de desejo e medo

Cena do filme Delicada AtraçãoNa imagem, o personagem Jamie faz massagens nas costas de Ste, que está deitado de bruços na cama. Jamie é um garoto branco na faixa dos 18 anos, de pele clara e cabelos loiros. Ele veste uma camiseta amarela com estampa vermelha. Ste é um garoto branco na faixa dos 18 anos com o cabelo curto e liso, na cor escura. Ele veste uma camiseta branca e uma samba canção azul e cinza. O quarto é todo azul, paredes, cortinas e lençol de cama. Nas paredes há várias fotos coladas.
O filme foi inspiração para o músico Johnny Hooker compor a canção Flutua (Foto: Film4 Productions)

Davi Marcelgo

Os apartamentos de um subúrbio londrino são palco de opressão e violência. Dentro das paredes de um quarto azul, habita a tranquilidade e doçura de um romance púbere entre dois garotos: Ste (Scott Neal) e Jamie (Glen Berry). No mundo confortável de ambos, dedos passeiam através da pele e a câmera do longa de estreia da diretora Hettie MacDonald (Normal People) revela muito mais do que palavras conseguem. Delicada Atração (Beautiful Thing, no original) é um retrato cru de vivências homoafetivas, mas que não abandona o otimismo. 

Ste é agredido constantemente pelo pai e o irmão, até que Sandra Gangel (Linda Henry), mãe de Jamie, sensibiliza-se com a situação e acolhe o garoto em sua casa. O resultado é a aproximação de Jamie e o amigo, que começam um romance e desfrutam da juventude gay em Londres. A cineasta consegue transmitir emoções antagônicas pela lente da filmadora com a maestria que poucos iniciantes – e até veteranos –, realizaram em suas obras debutantes. 

Os enquadramentos de MacDonald são precisos para oprimir as personagens, seja com planos plongée em Ste ou que impedem a visão do rosto de seu pai, filmando apenas o corpo, potencializando a presença física e afastando a conexão do público com o agressor. Mas esses também transmitem ansiedade e desejo. Ao estar com Jamie, a câmera altera sua postura e cria uma narrativa visual em uma escalada de plano médio, primeiro plano e detalhe cada vez que o clima entre os dois personagens fica mais quente. Já quando os deixam separados em quadros diferentes para juntá-los em um único, os enquadramentos narram o distanciamento e aproximação. 

Cena do filme Delicada AtraçãoNa cena, o personagem Ste está comendo bife queimado com seu pai e irmão. Ele está sentado numa cadeira no canto esquerdo. O pai e o irmão estão sentados no centro, num sofá. Na frente deles há uma mesa baixa de madeira, há garrafas e pratos nela. Ste é um garoto branco na faixa dos 18 anos com o cabelo curto e liso, na cor escura. Ele veste uma camisa na cor vermelha. O pai, que está do lado direito, é um homem de pele clara, na faixa dos 40 anos. Possui cabelos lisos na cor escura. Ele veste uma regata branca, calça cinza e tem tatuagens nos braços. Do lado esquerdo, o irmão veste uma camisa de botão na cor azul clara e calça azul escuro. Ele também é um rapaz branco, na faixa dos 20 anos, de cabelos lisos escuros. O pai encara Ste com expressão de zangado e mãos sob a perna. O irmão está sentado no sofá com a comida no talher, mas sem levar à boca. O ambiente é uma sala com aspecto velho e sujo, parede verde, tapete escuro no chão e quadros e cruz pendurados.
O ator Scott Neal teve uma participação regular na série policial The Bill (Foto: Film4 Productions)

O azul vivo do quarto de Jamie contrasta com as cores sóbrias do apartamento de Ste, que possui imagens de Jesus Cristo, símbolo geralmente usado por fiéis a fim de propagar ódio à pessoas LGBTQIA+. A cor ligada ao masculino é quente, confortável e banha a primeira noite de amor desses meninos. Com a câmera, a diretora fecha a visão nos corpos: dedos e costas, e lábios e rostos. As escolhas de enquadramentos, ângulos, planos, cenografia, tudo narra a história de opressão e amor envolvendo os dois. Em várias cenas, a câmera e diálogos conseguem trazer o convívio dos dois sentimentos como uma experiência de vida queer

No lugar de cenas e diálogos quentes, o roteiro de Jonathan Harvey utiliza uma linguagem ambígua. Ste não quer virar-se para Jamie para não mostrar que está excitado pelo amigo e usa como desculpa as dores causadas pelas agressões do pai. Neste trecho, fica subentendido as vulnerabilidades de Ste; admitir os  sentimentos que tem por Jamie é confirmar o lugar de fraqueza, de “marica” que o pai e o irmão sempre o colocaram. É ficar em ‘pé de igualdade’ com um garoto que também é vítima de violência – Jamie sofre bullying na escola –, além de passar a se enxergar como um rapaz que ama outros rapazes. 

-Posso te tocar?

-Estou um pouco dolorido.

– Delicada Atração (1996)

Delicada Atração é otimista em relação aos corpos LGBTQIA+ e às pessoas marginalizadas. Produzido no contexto da epidemia de HIV com o estigma sobre homens gays, o filme frisa que o destino desses personagens não é ficar doente ou morrer. Para os jovens da comunidade, ver dois garotos se amando dentro de casa, tendo um romance e contato físico íntimo e doce, foi e é incrível.

O filme termina com o casal dançando ‘coladinho’, à luz do dia, com a mãe e Leah (Tameka Empson) se juntando ao baile. Ainda que termine nessa bela utopia gay, celebrando o amor entre dois garotos, Delicada Atração não nega a presença do preconceito; alguns figurantes encaram os dois e não participam da dança. No entanto, ainda é um jeito otimista de finalizar um longa da década de 1990, com todas as sinas de morte e vida trágica decorrente da Aids rondando o imaginário popular. É, até mesmo, um paralelo com as tantas histórias de amores queer que só podem ser vividos em lugares noturnos e velados. 

Hettie MacDonald ressalta a presença da cultura de bares e drag queens na vida LGBTQIA+. Os meninos que foram ao pub na metade do longa, vão continuar indo. O filme não promove uma visão higienizada da dinâmica de casais homoafetivos , que, hoje, impera em Hollywood; em Delicada Atração, bebidas e sexo fazem parte da vivência. Acima disso, o contato com pessoas semelhantes, que compartilham experiências e formas de amar não heteronormativas, assim como a permanência nesses espaços criado pela e para a comunidade LGBTQIA+, é importante para o amadurecimento de um indivíduo queer, até mais do que uma aceitação da sociedade hétero. 

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