João Batista Signorelli
Quem precisa de cabos? Eles enrolam, estragam, dão nó, e não te deixam sair do lugar. Se isso já é um pesadelo pra mim, que tenho que lidar com um computador que não funciona com internet sem fio e precisa ficar ligado na tomada pra não morrer, imagina para um grupo musical que precisa enfrentar todo dia uma teia de aranha no palco? David Byrne também se questionou, e chegou à conclusão de que dividir o palco com um emaranhado de cabos definitivamente não estaria mais em seus planos.
O resultado dessa simples decisão foi o gigantesco David Byrne’s American Utopia, um show que lotou teatros em 2018 e 2019, em uma aclamada turnê ovacionada pela crítica e pelo público, e que marcou passagem inclusive pelo Brasil, com apresentações em Porto Alegre, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, e no Lollapalooza de 2018 em São Paulo. Paralisada pela pandemia, a performance já tem data marcada para voltar aos palcos da Broadway.
Impelido a registrar a performance, Byrne contatou outro nome de peso para transformar em filme o espetáculo: Spike Lee. A então parceria produzida pela HBO entre o ex-vocalista do Talking Heads e o diretor de Destacamento Blood rendeu seis indicações ao Emmy 2021. American Utopia marca presença ao lado de Bo Burnham, Hamilton e Friends na concorrida categoria de Melhor Especial de Variedades (Pré-Gravado), além de Melhor Direção em Especial de Variedades para Spike Lee, Direção Musical e mais quatro categorias técnicas em Especial de Variedades: Iluminação, Mixagem de Som, e Direção Técnica/Trabalho de Câmera.
Não é a primeira vez que David Byrne é destaque em um filme de um diretor consagrado documentando um concerto seu. Stop Making Sense, de 1986, considerado um dos mais importantes filmes-concerto da história, trazia Byrne à frente dos Talking Heads vestindo o icônico terno gigante, com direção de Jonathan Demme, que alguns anos mais tarde subiria a um outro palco para receber o Oscar de Melhor Direção por O Silêncio dos Inocentes. Spike Lee, por sua vez, já é um veterano dos videoclipes, tendo trabalhado com artistas como Stevie Wonder, Public Enemy, e até Michael Jackson no icônico clipe de They Don’t Care About Us, gravado no Brasil. O encontro destas duas mentes brilhantes resulta em uma das mais expressivas realizações artísticas do passado recente.
O espetáculo se inicia com Byrne sozinho no palco, sentado à uma carteira escolar, trocando uma caveira por um cérebro e cantando o seu próprio “To be or not to be” em Here. Mas ao invés de refletir sobre o propósito do existir aos moldes de Shakespeare, ele faz uma descrição da geografia do órgão principal do sistema nervoso. O que parece a princípio uma aula de biologia logo aponta para seus desdobramentos mais humanos: através do telencéfalo, nós entendemos o mundo, sentimos, amamos, vivemos. A partir daí, o artista nos leva a uma jornada através da experiência humana, buscando entender aquilo que nos conecta uns aos outros como semelhantes.
Pouco se passa até que ele não se encontre mais sozinho no palco, agora acompanhado por uma legião de músicos e uma dupla de dançarinos-cantores, todos descalços, vestindo ternos cinzas, e sempre ocupando o palco à frente de um único cenário. Em contraponto aos concertos de rock tradicionais, com a tentativa de compensar o tédio de ver os músicos em uma mesma disposição por duas horas com telões cheios de projeções com imagens pra lá de óbvias, Byrne se esvazia de todos os elementos distrativos, e chama a atenção para aquilo que importa até mais do que a própria música: as pessoas. Pois afinal, se existe a música para ser tocada e ouvida, é porque também há, inevitavelmente, seres humanos com o impulso criativo de comunicá-la para seus semelhantes.
As músicas escolhidas são uma mistura de uma seleção de clássicos do Talking Heads como Burning Down the House e This Must Be the Place (Naive Melody), com canções de seu mais recente álbum solo, que também leva o título de American Utopia. Ainda que carreguem conteúdos tão variados em suas letras, elas ainda parecem se encaixar com certa coerência, representando a longa busca que é fruto da tentativa de entender quem somos, como nos relacionamos, ou o que é de fato um lar. Muitas das canções parecem funcionar ainda melhor ao vivo, como é o caso das perguntas retóricas de Once in a Lifetime, que ganham um novo sentido ao ter a plateia como interlocutora.
Não por acaso, o possível desconhecimento do repertório de canções do cantor pouco interfere no aproveitamento da experiência. Voltando ao formato de show convencional, este tende a funcionar com suas limitações em grande parte devido ao engajamento do público com a setlist. A relação entre os artistas e a plateia é intermediada pela música, luzes e pirotecnia, mas Byrne nos mostra que não precisa ser assim. Ele nos pega pela mão, e convida a participar daquela sua Utopia junto com sua trupe, cuja humanidade nunca sai do foco. Mesmo o elaborado jogo de luzes, merecedor de sua indicação ao Emmy, mantém-se fiel à sua missão de dar destaque às pessoas, nunca roubando seu protagonismo.
Outro aspecto que colabora para enriquecer o aspecto humano de David Byrne’s American Utopia é a abolição dos cabos, substituídos por tecnologias sem fio, o que se torna o maior catalisador de possibilidades criativas para o espetáculo. Livrando-se das amarras limitadoras impostas pelo sistema de som, os músicos têm agora a possibilidade de movimentar-se por todas as direções. As coreografias desenhadas por Annie-B Parson exploram todo o espaço do palco, dando uma unidade àquele grupo de indivíduos tão diversos, e que mesmo vestindo um mesmo uniforme e marchando em conjunto ordenadamente, não deixam de transparecer suas cores e modo de ser, em um raro contexto onde a homogeneidade de um coletivo não ofusca as identidades individuais.
Entre o elenco oriundo de diversos países, em David Byrne’s American Utopia figuram dois brasileiros: o baiano Gustavo Di Dalva e Mauro Refosco de Santa Catarina. Com eles, berimbaus, atabaques, e outros instrumentos nacionais marcam presença no palco. O carinho de Byrne com o Brasil é antigo, já tendo gravado um disco ao vivo com Caetano Veloso, além de ser um dos principais responsáveis pela popularização de Os Mutantes fora do Brasil através do seu selo Luaka Bop, e de ter levado para o exterior diversos nomes da música brasileira como Tim Maia e Tom Zé. Reunindo diferentes culturas através de seu elenco diverso, David Byrne nos dá um gostinho do como seria essa sua utopia.
Tornar o mundo um lugar para todos viverem é um dos principais ideais que movem a performance. E do mesmo modo que a simples rejeição aos fios possibilita uma infinitude de novas perspectivas para a expressão artística no palco, é nas pequenas coisas que fazem grande diferença que Byrne alicerça sua utopia. Exemplo disso é o segmento onde ele, educadamente, demonstra o quão importante é a participação de todos nas eleições, determinantes para o futuro daquele e de todos os países. O engajamento social também se faz presente na canção Hell You Talmbout, uma homenagem respeitosa e solene à Eric Garner, Freddie Gray, Marielle Franco, e às tantas outras vidas negras perdidas para o sistema que deveria protegê-las.
Tal posicionamento justifica ainda mais a escolha de Spike Lee para a direção do projeto. Lee, que vem chacoalhando o status quo desde que Faça a Coisa Certa estreou em Cannes em 1989, oferece sempre um olhar certeiro para os conflitos sociais. O diretor enriquece através de sua lente um show que por si já era espetacular, transportando toda a sua vivacidade para as telas daqueles que não tiveram a oportunidade de testemunhar este evento ao vivo, e eternizando a utopia que, caso não fosse registrada, seria apenas um acontecimento passageiro. O encontro entre David Byrne e Spike Lee, duas vozes tão marcantes de uma mesma geração, não poderia ter sido tão bem-sucedido.
David Byrne’s American Utopia nos mostra que é possível fazer muito com pouco, e que certos excessos podem se tornar elementos limitadores para a liberdade criativa. Sem cabos e sem amarras, testemunhamos a enormidade de coisas que podem ser feitas em um palco, ou mais do que isso, a enormidade de coisas que podem ser feitas em um palco por pessoas. Pois no final, o que buscamos em uma obra de arte, nos relacionamentos, ou na própria vida, vai muito além de meras emoções ou sensações satisfatórias. Buscamos aquilo que é humano em si mesmo, e que nos revela que também o somos.