Bárbara Alcântara
É difícil de acreditar, mas houve uma época em que a MTV gastava os seus minutos com programas muito mais interessantes que Jersey Shore e My Super Sweet 16. Um exemplo é a série animada Daria, lançada em março de 1997 como um spin-off da queridinha da Era Dourada do canal, Beavis and Butt-Head. A protagonista era uma antítese da dupla de amigos sem noção que fez tanto sucesso: uma jovem inteligente, sarcástica e antissocial, que arrancava boas risadas do público ao tecer críticas ácidas ao estereótipo do americano “médio” – tudo isso sem esboçar um sorriso sequer.
O que a emissora fez, no entanto, não foi novidade. Na década de 90, o girl power estava a todo vapor: começando com as críticas diretas ao patriarcado do movimento riot grrrl até chegar às “rainhas” do mundo pop, Spice Girls.
Além disso, a ideia da menina que não se identifica com nada ao seu redor também já existia. Em junho de 1993, Daniel Clowes criou Enid, personagem principal da série de quadrinhos Ghost World. Famosa pela sua apatia e pelo seu senso de humor mórbido, junto com sua única e melhor amiga, Rebecca, Enid julgava, sem pudores, a tudo e a todos à sua volta – sem que elas mesmas fossem poupadas.
No fim dos anos 80, o conceito de feminismo era considerado ultrapassado e pejorativo – as pessoas acreditavam que os direitos das mulheres já eram plenos e qualquer reclamação era radicalismo (alguma semelhança com a atualidade?). Entretanto, no início dos 90, a mídia acabou tendo as atenções voltadas para a causa. Algumas meninas de Seattle e Washington, DC, estavam revolucionando a cena underground com o movimento riot grrrl, que usava a música para apontar o machismo ainda presente na sociedade.
É claro que nem toda a visibilidade era positiva, mas o importante é que ela fez com que o conceito fosse incorporado à indústria cultural. Em pouco tempo, o “Revolution Girl Style Now” foi sintetizado e transformado em “girl power”, e uma porção de mulheres passou a adotar essa postura (mesmo sem entender completamente o que significava). Foi tão forte que atingiu o ápice do mainstream: as Spice Girls. A partir deste momento, era girl power para todos os lados!
A MTV não ficou de fora dessa febre: Daria Morgendorffer apareceu pela primeira vez em um dos episódios do clássico Beavis and Butt-Head. O jeitinho peculiar da personagem chamou a atenção do público – e consequentemente dos roteiristas Karen Disher e Glenn Eichler, que logo resolveram criar um programa só para ela.
A história de Daria começa quando ela e sua família se mudam para a cidade de Lawndale. Em casa, o cenário não é muito satisfatório: a menina se vê isolada entre a mãe, Helen, a típica workaholic que tenta sem sucesso participar e controlar a vida das filhas, e o pai, Jake, que tem sérios problemas com estresse e é alienado das questões familiares. Para completar, a irmã caçula, Quinn, é o sinônimo de tudo o que ela detesta – a garota fútil e rasa que tem como principal meta de vida ser popular.
O primeiro dia na escola nova é um desastre: ao mesmo tempo que sua irmã recebe convites para ser líder de torcida e vice-presidente do clube de moda, ela própria falha miseravelmente em um teste de auto estima e precisa participar de um curso especial para aumentá-la. As aulas ajudam de um jeito diferente, apresentam Daria a quem se tornaria a única pessoa com quem conseguiria se abrir de verdade, a amiga Jane Lane. Juntas, passam horas assistindo ao programa preferido delas, “Sick, Sad World”, e param apenas para comer pizza, enquanto tiram sarro da vida maçante e sem sentido das pessoas ao redor.
Daí em diante, o enredo se desenvolve por meio de situações corriqueiras vividas por uma típica adolescente do ensino médio, incluindo personagens caricatos: a líder de torcida superficial, o atleta bobão que esconde a ausência de músculos usando o uniforme o tempo todo, o casal afrodescendente inteligente, a diretora esquisita, o professor de literatura que tenta sem sucesso se conectar com os alunos e até uma menina meio emo-gótica que tem um visual claramente inspirado na Morte, dos quadrinhos de Neil Gaiman.
O que rola de diferente no desenho é que não há romantização. A maior parte dos acontecimentos é encarada sob uma perspectiva realista (para não dizer pessimista). Daria está completamente ciente dos papéis assumidos pelos pais, a irmã e, inclusive, ela própria. Deixa isso claro em um episódio quando os define, em míseros segundos, para um psicólogo:
“Minha mãe é ressentida por ter que trabalhar tanto, o que obscurece a sua culpa por querer trabalhar tanto. Meu pai se sente culpado por ser menos bem-sucedido que a minha mãe, mas acha errado se sentir assim. Então se esconde por trás de uma fachada de falta de noção. A Quinn usa a superficialidade como uma armadura porque ela tem medo de olhar para dentro e não achar nada. E eu sou tão defensiva que faço as pessoas me detestarem para não me sentir mal quando me detestarem. Posso ir agora?”
Ghost World, por sua vez, foi lançado originalmente na revista Eight Ball, também de Daniel Clowes, nas edições que iam de junho de 1993 a março de 1997 – para que no final do último ano fosse transformada em uma graphic novel. Venceu o prêmio Ignatz como melhor álbum em quadrinhos e logo se tornou um ícone cult.
Clowes narra a história de Enid Coleslaw e Rebecca Doppelmeyer, duas amigas que acabaram de terminar o ensino médio e vivem um período de transição da adolescência à fase adulta. Apesar de sentirem o grande alívio de deixar a escola para trás, elas começam a perceber as cobranças caindo sobre suas cabeças, enquanto tudo o que elas queriam era assistir a programas fúteis de comédia ou qualquer outra babaquice na TV.
Seus planos para o futuro, incluindo a amizade eterna, começam a cair por terra quando suas vidas tomam caminhos divergentes. Rebecca começa a trabalhar e juntar dinheiro para alugar um apartamento na região. Enid está perdida e confusa: troca de visual constantemente, em busca de uma identidade própria, e não aceita a ideia de passar o resto da vida presa naquela cidade sem graça e monótona.
O tédio sentido por Enid e compartilhado pela amiga Rebecca é transmitido por Clowes, nos tons-pastel das ilustrações (a primeira edição era inteira em azul claro, em seguida verde) e a presença da pichação “Ghost World” em diferentes cenários. A construção visual passa a sensação de que as meninas circulam por um mundo fantasmagórico, recheado de pessoas dissimuladas e egoístas. Um lugar também de lembranças e de regalias das quais não querem abrir mão, ao mesmo tempo que são obrigadas a amadurecer para alcançar a tão sonhada independência.
A dupla de amigas não tem escrúpulos ao julgar as pessoas. Falam muitos palavrões e tratam de temas tabus, como o sexo e a masturbação feminina, de uma forma completamente banal. Abordam questões como a hipocrisia de um ex-padre pedófilo (!), de pseudosatanistas e de um “rebelde” neonazista no decorrer da história. São cínicas e sarcásticas, sem muitos valores morais, e não excluem elas mesmas de suas críticas.
O discurso das meninas, entretanto, é o contrário do que aparenta ser, grosseiro e vazio. As ofensas desmedidas expressam a frustração de duas jovens incomodadas com algo que não sabem definir. A própria HQ não tem um enredo nítido, apesar de ser recheada de referências.
Em 2001, o quadrinho virou um filme. O autor ajudou o diretor Terry Zwigoff na adaptação do roteiro, mas o enredo original foi colocado em segundo plano: o foco ficou no romance entre Enid (Thora Birch) e Seymour (Steve Buschemi), inexistente na HQ. O grande problema dessa mudança é que houve uma deturpação da essência da narrativa, que deu à Enid algumas características de um estereótipo muito utilizado pela indústria cinematográfica, a manic pixie dream girl.
Esse conceito é tão engessado quanto a femme fatale ou a “bela, recatada e do lar”, com a diferença de que, nesse caso, a menina principal é meio hipster-alternativa-doidinha-impulsiva que, apesar de ter muitos defeitos, aparece e modifica a vida de um homem por completo. Ela agrada e se adequa ao gosto masculino, coisa que a personagem dos quadrinhos definitivamente não faz.
Num panorama geral, as obras têm muito em comum. Conseguem captar o espírito de uma época, sem deixar de lado críticas e ressalvas. As protagonistas, por sua vez, estão longe da perfeição. Veem-se postas contra a parede em diversas situações, e entram em contradição. Isso acontece quando Daria resolve trocar os óculos por lentes de contato por pura vaidade (fingindo ser para as aulas de direção), ou então quando coloca um piercing no umbigo para impressionar o irmão da sua melhor amiga, Trent. Com Enid não é muito diferente: ela chega a transar com Josh, “crush” de Rebecca, tentando afogar algum tipo de mágoa. Suas incessantes mudanças de visual também demonstram o quanto ela se vê atingida pela opinião alheia, apesar de desdenhar dela.
Esse contínuo paradoxo em que estão mostra o quão humanas, palpáveis, as duas são. Escondem, por detrás de um véu de artifícios utilizados para se tornarem apáticas e desinteressantes ao olhar dos outros, jovens sensíveis e inseguras, incomodadas com as hipocrisias e anomalias da sociedade atual. Fazem avaliações baseadas na insatisfação que ambas sentem com o contexto em que estão inseridas: o mundo contemporâneo dominado pela cultura de massa. Elas tentam encontrar individualidade em um ambiente onde todos se comportam e pensam da mesma forma.
Enquanto Daria é uma adolescente que ainda vive as insatisfações de uma estudante do ensino médio e não tem interesse em se misturar, Enid é uma jovem adulta que protagoniza o desamparo de tentar, contra a própria vontade, se enquadrar em um mundo que despreza. De uma forma ou de outra, são mulheres que tomam as rédeas de suas próprias vidas e, em meio a deslizes e incoerências em um mundo doentio e triste, mostram que o girl power vai muito além de uma camiseta ou o nome de uma música. Tem como não se identificar?