Aviso: o seguinte texto discursa sobre temas que podem se tornar gatilhos para algumas pessoas que sofrem/sofreram com dependência química e violência sexual.
Clara Sganzerla e Letícia Stradiotto
Separe sua calça boca de sino, seu óculos escuro, uma blusa com a estampa mais divertida do seu armário e entre na atmosfera dos anos 70 com a banda mais incrível que, até então, não existia. A nova série do Amazon Prime Video, baseada no livro de mesmo nome da autora Taylor Jenkins Reid, nos apresenta, com muito drama, romance e emoção, a ascensão e queda do grupo mais polêmico e amado do Reidverso. Antes de mergulhar na Los Angeles regada a drogas, sexo e rock n’ roll, não esqueça seus fones de ouvido e prepare-se para se apaixonar, chorar e voltar no tempo com Daisy Jones & The Six.
Em uma adaptação cinematográfica excepcional, temos o prazer da experiência completa ao ler, ouvir e assistir a obra de Reid. A começar, é claro, pelo elenco. Depois de nos apaixonarmos por Finnick Odair em Jogos Vorazes ou por Will Traynor em Como Eu Era Antes de Você, Billy Dunne vai te levar do céu ao inferno com todos seus charmes e defeitos, encarnados por Sam Claflin. E, enquanto nos encantamos por Camila Dunne, interpretada por Camila Morrone, Riley Keough incendeia a cidade dos anjos protagonizando a alma livre, rebelde e quebrada da maior musa e principal peça desse triângulo amoroso, Daisy Jones.
A melhor parte é que, felizmente, o drama da série não se limita aos vocalistas. A química envolvida entre Karen Sirko e Graham Dunne, materializada por Suki Waterhouse e Will Harrison, nos tirou algumas lágrimas. Já a oposição de Eddie Roundtree (Josh Whitehouse) ao egocentrismo exagerado de Billy antes da chegada de Daisy à banda foi exatamente o que precisávamos – isso sem contar com o alívio cômico Warren Rhodes (Sebastian Chacon). Ao todo, o grupo tornou-se uma família dentro e fora das telas, trazendo uma versão original da caótica energia Woodstock mesclada com outros ícones atemporais da Música da época.
Além da impecável fotografia de Checco Varese e o figurino dos sonhos de Denise Wingate, a cereja do bolo para os fãs foi, sem dúvidas, AURORA. Em 11 faixas que contaram com a composição de Phoebe Bridgers, Sam e Riley soltaram a voz para que canções inspiradas nos livros grudassem em nossas cabeças com um rock suave. A grande ironia, nesse caso, é descobrir que a neta do Elvis Presley, a intérprete de Daisy, mentiu nas audições ao dizer que cantava. Foi somente depois de algumas aulas que a pegada musical da família aflorou em seu espírito, entregando lindos vocais, como em The River e Look At Us Now.
Adentrando ainda mais nas particularidades da obra de Taylor Jenkins Reid, a trajetória da banda Daisy Jones & The Six bebe da essência de um dos maiores nomes da Música nos anos 70: o grupo anglo-americano Fleetwood Mac. A inspiração da autora está por trás do álbum Rumours, conhecido por hits como The Chain e Dreams. O disco é amparado em ritmos do folk rock e, principalmente, pelas tensões amorosas moldadas em canções. Assim como Daisy e Billy, a história da banda ganha destaque pelas agulhadas de Stevie Nicks e Lindsey Buckingham em suas performances ao vivo. A cantora e o guitarrista começaram a namorar e, assim como todos os casais rodeados pelo sucesso, seu amor pode ter chegado ao fim no mundo da fama, porém, ainda estavam reféns. Com fúria, ódio e doses de cocaína, o casal performou com paixão e loucura em 1982.
Como se não bastasse tal inspiração, o caos da fama – e, consequentemente, das drogas – em Daisy Jones tem um pé na realidade de Stevie Nicks. No livro, a personagem é retratada como uma usuária frequente de substâncias ilícitas, incluindo a cocaína, algo que a cantora do Fleetwood Mac fala publicamente sobre o uso naquela década. A vocalista afirma que todos os integrantes eram viciados, mas ela era a pior. E se isso já é coincidência demais, aqui vai um bônus: a dependência de Nicks no narcótico mais utilizado pela indústria da Música a levou a uma overdose em 1986 que quase acabou com a sua vida. Assim como Daisy no oitavo episódio, Parece que a Gente Conseguiu, em que obteve doses excessivas da substância no organismo, mas foi salva por Billy Dunne.
No entanto, a pegada mais densa na obscuridade química do sucesso não é tão presente na adaptação quando comparada ao livro. A série retrata com mão leve o vício exacerbado em drogas e bebidas no universo do rock’n’roll. Tal fato é justificado pelo objetivo de manter a obra como algo mais acessível e livre de polêmicas maiores, afinal, possui um sutil toque no público infanto-juvenil. Entre o rock e o soft, a produção mantém o equilíbrio desejado pelos espectadores, regulando as doses de perplexidade da subcultura.
Seguindo nessa estrada da harmonia, a série não erra ao adentrar nas contradições do passado. Mesmo na incessante busca pela liberdade e paz que inundava o cenário cultural da década, ainda esbarramos no machismo e na homofobia. Dentro dessa narrativa de silenciamento, nossa dancing queen Simone Jackson (Nabiyah Be) encontra sua luz nas pistas de Nova York, mas depara-se com a escuridão ao ter a mais clichê das escolhas no contrato de sua gravadora: o amor da sua vida ou a carreira dos seus sonhos. Nos surpreenderia se esse fosse o único caso do tipo dentro da produção. A história de vida de Daisy é manchada pelo abuso psicológico de seus relacionamentos amorosos, enquanto Karen sabe que arruinará sua carreira se assumir publicamente o relacionamento com seu colega de banda Graham – exatamente ao estilo “Ele queria uma esposa/Eu estava fazendo meu nome”.
A trama demonstra o crescimento do grupo musical ao longo dos curtos anos, com shows cada vez maiores e com fãs espalhados pelo mundo, os groupies garantiram o seu lugar na Lua. Mas, ainda imersa no planeta Terra, estava Camila Dunne. A esposa do galã de Daisy Jones & The Six talvez tenha ganhado o papel mais importante e emotivo na história. Camila é o ponto de racionalidade entre toda a bagunça e confusão dos holofotes, sendo a âncora responsável por manter firme a embarcação. Não se engane: ela pode até parecer apaixonada ou ingênua demais, mas sua sagacidade é demonstrada exatamente através do olhar que a fotógrafa exercita em sua vida – ficar ou não com Billy sempre foi, no fundo, uma escolha, e não uma dependência. Seu enredo, no fim, é tão comovente que nos faz questionar quem realmente é a protagonista.
Esse questionamento não é apenas dos telespectadores, mas também do próprio Billy Dunne, que se encontra constantemente dividido entre suas paixões. A narrativa construída com um compilado de entrevistas tange no estilo documentário e demonstra aquilo que não estava explícito na época. No entanto, um incômodo na trama é a ausência da exploração de alguns de seus personagens: o enredo deixa um pouco de lado o desenvolvimento de outros integrantes da banda. Com exceção de Karen e Graham, que vivem um romance, os membros do grupo como Eddie e Warren, muitas vezes, ficam em segundo plano, tendo um singelo destaque apenas no final da temporada. Dessa forma, o triângulo amoroso entre Camila, Billy e Daisy Jones é o motor responsável pelo clichê rockstar, em que a universalidade das histórias consiste na instigação que motiva o público de Jenkins Reid. Afinal, o que as estrelas estão nos mostrando e o que elas querem esconder de suas vidas?
O relacionamento de Daisy e Billy é eletrizante, e de enemies to lovers os artistas se completam por possuírem muito em comum, principalmente os defeitos. O ego e a luxúria transformam a dupla em uma espécie de bomba que pode explodir a qualquer segundo: suas características, arrebatadas em conjunto com as fraquezas emocionais, estrondam o amor impossível, caindo na expectativa de querer aquilo que não podemos ter. Ao protagonizar seu último show em 1979, a banda Daisy Jones & The Six recebe seu devido término por ter se arriscado demais ao entrelaçar desejos de sentimentos inconcebíveis.
A história de Música e amor agrada por ser uma coleção de clichês, com personagens e composições extremamente viciantes em uma estética muito bem construída. De Pittsburgh para as águas internacionais, a obra de Taylor Jenkins é apenas um dos livros de sucesso da autora que ultrapassaram as barreiras da ficção – no fundo, todos nós sentimos falta de uma banda tão icônica, polêmica e talentosa para aquecer nosso coração. E se o Oscar é da Evelyn Hugo e o Grand Slam de Carrie Soto, o Grammy com certeza vai para Daisy Jones & The Six.