Aryadne Xavier
“Você pensou que eu deitaria e morreria?/Oh não, eu não. Eu vou sobreviver/Enquanto eu souber como amar/Eu sei que permanecerei viva/Eu tenho minha vida toda para viver/Eu tenho meu amor todo para dar e/Eu vou sobreviver, eu vou sobreviver”
– I Will Survive (Gloria Gaynor)
O ser humano pode não nascer programado para certos comportamentos, mas os aprende tão cedo que pode sentir, em seu íntimo, que as coisas apenas são dessa maneira. O desejo de pertencer, resquício fundamental do desenvolvimento em grupos, é tão latente que se transforma em uma vontade dupla de ser aquilo que é aceitável ou ao menos parecer ser. Lançada ao mundo pela primeira vez há 130 anos, a revista Vogue imprime o que seu próprio nome diz. Registrando e, talvez, ajudando a ditar o que está em alta, a publicação estadunidense foi, por incontáveis vezes, inacessível a uma parcela da população, que podia apenas se projetar nela, como um sonho.
Tal projeção se via em uma sombra, refletindo aquilo que brilhava, mas o objetivo nunca foi copiar fielmente. Ao imitar as poses das modelos da Vogue em uma espécie de duelo, o grupo que participava das balls se apropriou daqueles movimentos, criando algo único. O Voguing se tornou algo muito além da revista, mesmo que seus nomes ainda possam ser assimilados. Esse ato de reconstruir, verbo que sempre fez parte dessa cultura, foi o que reinventou e revolucionou o que é ser uma pessoa da comunidade LGBTQIA+ em sua época de fundação, trazendo identidade, força e conexão até o presente.
A origem histórica desses encontros se inicia no Harlem, bairro da cidade de Nova Iorque que concentra uma população predominantemente afro-americana. Ainda que a primeira manifestação de algo parecido com um concurso de beleza para pessoas drags nos EUA seja de 1849, no Masquerade Ball, alguns dos registros mais antigos do que realmente pode ser considerado Ballroom datam das décadas de 1920 e 1930, no então Hamilton Lodge Ball, que viria a ser palco de diversas balls (nome dado aos bailes).
A melhor maneira de sintetizar o que seriam esses encontros é descrita por Pepper LaBeija no documentário Paris is Burning (1990), ao dizer que esses bailes eram como uma fantasia de ser famoso. Fruto de uma população marginalizada e excluída de um progresso disponível apenas para a população que se parecia e estrelava os anúncios que pregavam o ‘modelo de vida americano’, as manifestações se tornaram um centro de encontro para negros e latinos que migraram para a terra do Tio Sam e toda a população LGBTQIA+ da região.
Crystal LaBeija pode ser destacada como a pioneira na formação dessas casas ao fundar a House of LaBeija em 1968 com Lottie LaBeija, primeira house da Ballroom que propôs balls que contrariavam o silenciamento de corpos que não se encaixavam no padrão de beleza europeu, principalmente corpos negros. Em 1972, aconteceu o primeiro baile anual da casa criado para acolher pessoas diferentes. Essa abertura a diferentes categorias e a possibilidade de enquadrar todas as pessoas em um ambiente seguro para serem quem são transformou a o movimento em um símbolo político, de ocupação de espaços que pertencem a cada pessoa e celebração da diversidade de gênero, sexualidade e raça.
Na construção dessa cultura, alguns termos foram empregados para definir lugares, ações e pessoas. As houses, por exemplo, são casas que abrigam os Ball-goers (pessoas que frequentam os bailes), criando um senso de pertencimento e acolhimento. Cada casa leva um nome, geralmente o de sua fundadora, e todos os membros o recebem como um sobrenome. Dentre as houses mais conhecidas, é possível citar House of Dupree (Paris Dupree), House of LaBeija (Crystal LaBeija), House of Ninja (Willi Ninja), House of Pendavis (Avis Pendavis), House of Xtravaganza (Angie Xtravaganza) e House of Corey (Dorian Corey).
As casas ainda são lideradas por uma figura maior, a mãe (Mother) ou, algumas vezes, o pai (Father). As primeiras são chamadas assim por serem as matriarcas de cada house, o porto seguro de muitas crianças (Children) que não encontraram apoio em suas famílias biológicas. Mais do que figuras experientes, as Mothers eram as vencedoras dos icônicos bailes que aconteceram no Harlem em décadas anteriores (1920, 1930 e 1940). Chamadas de Legendary, elas foram essenciais para a construção e estabelecimento dessas comunidades, além do suporte constante que existia entre a mãe da casa e suas crianças na época.
Ball é a maneira mais informal de nomear os bailes em si: eventos de longa duração em que cada participante performa em sua categoria. Até mesmo por isso se explica o nome Ballroom, que determina os lugares onde acontecem esses encontros. Cada evento conta também com seus prêmios, sendo dado a quem vence o Grand Prize, troféu que traz muito prestígio ao vencedor(a/e) e a sua house. A honraria trazia um grande reconhecimento dentro da comunidade: a maioria das Mothers foram vencedoras de Grand Prizes e, quanto mais prêmios, maior a fama e o sucesso daquela casa.
Quando falamos da influência da Ballroom na cultura pop, um grande exemplo é a música Vogue, um dos maiores sucessos da carreira de Madonna, que apresentou uma parcela dessa cultura ao mundo no início dos anos 1990. A canção conta com a participação ativa de José Xtravaganza. Importante relembrar que a artista não é e nunca foi a fundadora do estilo de dança conhecido como vogue, mesmo tendo figurado o clipe e as apresentações da música, além de ter sido o rosto representativo dessa manifestação em um imaginário popular por muito tempo. A influência também pode ser notada na produção de FKA TWIGS, cantora e performer que já esteve presente em alguns balls, como o The Mugler Ball (2014).
Um dos exemplos mais recentes e de maior explosão no cenário musical global é o álbum Renaissance. O projeto, protagonizado por Beyoncé, mas que carrega uma extensa lista de artistas envolvidos, veio como um resgate à cultura queer, apresentando o que há de mais potente na união dos ritmos. Na Sétima Arte, Pose da FX e Legendary da HBO são destaques, retratando o funcionamento das balls e as pessoas que participavam e ainda participam desses encontros. Mesmo falando muito no passado, por citar e tratar pontos históricos, é válido reforçar que a cultura Ballroom segue viva e resistente.
No contexto de um país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, é irônico sugerir que a comunidade tenha benefícios, imponha ditaduras ou algum tipo de glamourização em ser uma pessoa não heterossexual no Brasil. A fala da personagem Alícia, da novela A Favorita (2009), na qual afirma que “o chique é ser gay” pode ter virado um meme nas redes sociais recentemente, mas, nas entrelinhas, sabe-se que o riso vem como forma de tirar do centro o poder de quem se sente no direito de controlar a vida, os jeitos e os sentimentos do outro.
Nesse cenário de luta diária, a cultura Ballroom também chegou aqui como um símbolo do movimento queer relacionado a pessoas não brancas. A primeira house brasileira é a House of Hands Up, fundada em 2015 por Eduarda Kona Zion em Brasília. Essa cultura de espaços acolhedores se fortalece até os dias atuais no país por ser um lugar com uma função social: acolher e permitir a existência de quem foi marginalizado pela sociedade por ser diferente do que é considerado a ‘norma’.
Lembrar e exaltar a cultura Ballroom é uma forma de colocar sob os holofotes pessoas negras, latinas e LGBTQIA+ e dar uma nova visão à sociedade, na qual essas vidas não estão atreladas ao sofrimento. Referenciando a fala da Deputada Federal Érika Hilton, “Aonde estão as pessoas trans além da prostituição? Aonde estão as pessoas trans além das manchetes policiais?”, estão nas balls, nas houses, expressando sua vida pela Arte da Dança e da Música. E estão muito além do que a sociedade os enxerga: estão ressignificando e criando. A Ballroom pode ser descrita como uma forma coletiva de sobrevivência, mesmo quando tudo de si é tirado. É sobre se encontrar em um lugar, se reconhecer e tornar sua vida fabulosa nas suas possibilidades de ser.