Adriano Arrigo
Se há uma memória que me remeta a seção de Terror das extintas locadoras, elas certamente está relacionada a algum filme de John Carpenter. Não que eu tenha assistido, mas a capa de A Cidade dos Amaldiçoados (1995) realmente me apavorava (ok, eu era uma criança medrosa), além do medo me cutucar no pôster da Enigma de Outro Mundo (1987). Como criança, o medo parecia morar nas capas escuras com algum monstro (ou parte dele) em evidência e, no verso dos VHS/DVD’s, o terror era acionado apenas com as melhores direções de arte e maquiagem.
As transfigurações dos atores e as máscaras de látex estavam no seu auge, e Carpenter, obviamente, era responsável por isso. O próprio Michael Myers, o assassino da franquia Halloween, é tão bem conhecido por máscara de borracha, além de ser um forte símbolo dos slasher, gênero que Carpenter também ajudou a colocar no mapa.
Seu quinto filme que esse ano faz 30 anos, Príncipe das Sombras (Prince of Darkness, no original), não é uma exceção. Mas aqui, seus elementos marcantes são usados suavemente e, não por coincidência, é um grande longa pouco reconhecido de sua carreira.
Príncipe das Sombras trata de seitas secretas, possessões demoníacas, outras dimensões, mensagens do futuro e, claro, muitas mortes que Carpenter trata-as com fina coesão. No filme, é descoberto um segredo mantido pela Igreja Católica por séculos. Trata-se de um vasilhame que contém um líquido verde espesso com movimentação própria que, posteriormente, descobre-se ser o filho de satanás.
Ok, isso parece engraçado. Não devemos esquecer que a carreira do diretor está pautada num gênero que muitas vezes é confundido com o trash (ou não queremos dizer que isso é um gênero só). Mas a artimanha de Carpenter é fazer essa história se tornar verossímil. E, acredite, ele consegue.
Quer dizer, sem muitas exigências, o vaso verde é colocado a prova – como nós mesmos fazemos ao assistir ao filme – do rigor científico. Carpenter opta por não colocar meia dúzia de adolescentes sarados com um bastão de beisebol para tentar cacetar a cabeça do tinhoso. Para desvendar o problema, é selecionado a mais high society universitária para entender as origens e os efeitos do vaso com ectoplasma verde.
“Eu estava fazendo muitas leituras sobre física teórica e teoria atômica, e achei isto incrível. Não só incrível, mas também como isso estava transformando a verdade de tudo”, conta o próprio Carpenter em sua biografia sobre a escolha de seus personagens. Mesmo que não são sejam discutidas a fundo, seus levantamentos relacionados a ciência estão impregnados por todo o filme entrelaçando-os, inclusive, com a ficção científica.
Este ponto traz aspectos muito interessantes pois fazem um contraponto entre a derrota do satã pelos métodos ortodoxos (cruz e bíblia) ou através da racionalidade da ciência. As conversas entre o padre e o professor de física teórica parecem ser, pelo menos para Carpenter, vindas de um mesmo método ou universo. Para ambos, a mudança em nível subatômico no mundo é ilógica sob interferências externas. Isso explica a divindade, a partícula divina em cada uma das coisas.
No filme, isso é simplificado como nas cenas com os mendigos da rua ficam absortos pela experiência que há de passar a humanidade e fixam seus olhos sob a igreja esperando que algo aconteça ou não, da mesma forma que o experimento mental do Gato de Schrödinger afrouxa a mecânica quântica clássica.
Então, por mais incrível que pareça, Príncipe das Sombras tenta fazer as pazes entre ciência e religião através de suas teorias científicas ou mesmo através de especulação (a melhor delas é que Cristo era um extraterrestre). “Nossa tecnologia não desenvolveu um transmissor suficientemente forte para alcançar seu estado consciente acordado, mas isso não é um sonho.” A emissão de um vídeo vindo do futuro através de sonho é tanto esteticamente inovadora quanto coerente, e nos faz lembrar outros grandes antecessores como Videodrome (1983) de David Cronemberg e Viagens Alucinantes (1980) de Ken Russel, sem contar a predisposição por insetos de Phenonema (1985) do outro estranho Dario Argento.
Mas Carpenter também é original e estingante. Assim como os versos das capas de filme de terror, a pata do demônio aparecendo só de leve mostra que o longa não quer ser explícito, e que muito menos o medo reside em uma auto concretização. Há um sentimento de tensão que ronda o filme todo, mesmo que ele seja estragado por diálogos ruins e péssimas interpretações.
Da mesma forma que o filme abstrai o sentido do medo, também temos que abstrair o filme como um todo para não nos decepcionarmos com esses vieses. Mas nada que atrapalhe o produto final que é embalado por uma trilha sonora recompensatória e sem falhas composta pelo próprio Carpenter e seu parceiro de longa data, Allan Howart.
E embora não esteja entre os favoritos de Carpenter, Príncipe das Sombras é o auge da carreira do diretor e dá chão para um dos filmes mais estingantes do diretor, Eles Vivem, que seria lançado no ano seguinte. A preferência de temas relacionados a teorias da conspiração também são os temas comuns aos anos 80, mas que hoje são escassos nas prateleiras do gênero.
O longa perdeu força no cinema atual que hoje vê suas produções que fazem essa fusão de elementos somente no intitulado pós-terror. Sentimos saudades não só de títulos obscuros nas prateleiras de locadora (e das prateleiras também), mas de um mestre do terror que faz falta tanto pelas máscaras de borrachas quanto por sua ousadia.