2.ª temporada de Ruptura atualiza o conto de Orfeu e Eurídice enquanto lida com a crise existencialista

Em primeiro plano está Mark, coberto de sangue em seu rosto e sua gola. Ao fundo, desfocada, está Hellen. Ambos estão em um corredor iluminado de vermelho. Mark esta de costas para Helen, que olha em direção a Mark.
A série revigora o conto de Orfeu e Eurídice (Foto: Apple TV+)

Guilherme Moraes

Depois do grande sucesso da temporada de estreia, a expectativa para a sequência de Ruptura era enorme. No entanto, apesar da ansiedade dos fãs, Severance (no original) retornou três anos depois, um tempo considerável levando em conta a velocidade com que se produz séries atualmente para agradar a demanda do público. Contudo, se o preço para uma produção de qualidade é o tempo, então que se espere mais alguns anos para a continuação, pois a 2.ª temporada mantém o nível, ao colocar Mark S. (Adam Scott) e outros internos em crise existencialista, sem perder de vista as críticas ao sistema capitalista e as jornadas de trabalho.

A primeira cena, em Olá, senhora Cobel, já nos apresenta a uma das características dessa season. Como a anterior se encerra no clímax, era esperado que retornasse naquele exato momento. Ledo engano. Ben Stiller e Dan Erickson deslocam o espectador com um suposto salto temporal. Desta forma, temos a mesma sensação dos internos, enclausurados, ansiosos, e, ao mesmo tempo, entediados, pois, intencionalmente, o capítulo joga um balde de água fria e quebra o ritmo que estava se construindo.

A quebra de expectativa é fundamental na construção de uma ideia: qualquer luta que permita a manutenção do sistema, será uma luta apenas pelos direitos básicos. Apesar de todo o esforço do quarteto, suas grandes conquistas foram necessidades imprescindíveis no ambiente de trabalho, mas nenhuma mudança significativa quanto a vida e a existência. Ao final da revolta e tudo o que vivenciaram, eles devem voltar ao serviço imediatamente.

Na imagem estão Mark e Helen em um corredor branco. Mark está à esquerda, usando um terno azul, segurando Helen pelos ombros e olhando fixamente para ela. À direita está Helen, ela está com uma blusa azul claro. Ela segura Mark um pouco acima da cintura e olha para os olhos dele. Ambos expressam certa preocupação no olhar.
Ruptura foi lançada em 2022 (Foto: Apple TV+)

A despeito dessas críticas, a temporada vai para um lado muito mais existencialista. Os internos começam a ter suas ‘primeiras vezes’, começando na season finale e tendo continuidade durante os novos 10 episódios; a primeira vez que viram o céu, que beijam, que dormem, que fazem sexo, que se apaixonam, que vivem de verdade. Todavia, junto com a vida, vem a morte. Após experimentarem serem humanos e voltarem à condição normal, ver seus desejos e necessidades serem negados faz eles optarem pela morte. Chocante é o momento em que Irving (John Turturro) é ‘assassinado’ em frente aos seus amigos, ou que Dylan (Zach Cherry) pede demissão, o que para os internos é sinônimo de suicídio. Os roteiristas e os diretores dos episódios Vale da Aflição e Depois do Expediente, são muito precisos em representar de maneira forte e melancólica, enquanto os funcionários da LUMON lidam com normalidade, causando uma certa estranheza.

Dentro do contexto geral, Vale da Aflição é o capítulo que melhor integra o existencialismo com as críticas ao sistema, além de fazer essa ponte entre essa mudança de foco temático. Ben Stiller lida com a solidão e a falta de amor dentro do capitalismo. O foco é colocar os personagens em um contexto desconfortável, jogando um contra o outro. Nesse sentido, Helena e Irving são o destaque, por meio da rivalidade estabelecida desde Ola, senhora Cobel. Ambos se sentem sozinhos, por diferentes motivos: Helena (Britt Lower) não recebe amor do pai, demonstrando como as relações familiares se tornam palco para negócios – ao estilo Succession (2018) –, e Irving perde Burt para a aposentadoria, evidenciando o descaso das empresas com seus funcionários. Enquanto a primeira finge ser o seu duplo (Helen) para receber afeto de Mark, Irving transforma seus sentimentos em revolta, culminando em um sacrifício em prol dos seus amigos. 

De maneira gradual, Ruptura sedimenta o caminho para a revolta dos internos. A partir de Cavalo de Troia, Mark S. começa a se enxergar cada vez mais como uma pessoa, aceitando seus sentimentos por Helen e tentando viver, ainda que em um contexto desfavorável. Existe uma certa ironia, muito bem trabalhada sobre o fato de que, apesar de todas as críticas ao ambiente de trabalho, é nele em que aprendemos a viver um pouco. Conhecemos outras pessoas, fazemos amizades, namoramos e criamos laços. Enquanto isso, os externos não conseguem tocar a sua vida. Mesmo para Dylan que tem mulher e filhos, ele aparenta ser muito infeliz. Todos os ‘out estão muito sozinhos, não importa quantas pessoas o cercam. Paralelamente, os seus duplos conseguiram criar vínculos muito fortes entre si.

 Na imagem estão Helen, Mark, Irving e Dylan, nesta exata ordem. Helen está mais ao fundo e Dylan mais próximo da imagem. Os quatro estão com blusas de frio pretas e um gorro da mesma cor. Todos olham para algo fora do plano, à esquerda.
A série já está renovada para a terceira temporada (Foto: Apple TV+)

A segunda temporada aposta cada vez mais no mistério, parecendo, em certos momentos, Lost, só que um pouco mais galhofa. Antes de falar sobre o que o suspense constrói, é preciso dar o contraponto. Por vezes, a série se perde demais criando suspense para manter uma atmosfera interessante, mas vazia; suspense pelo suspense. Contudo, isto ocorre em episódios muito específicos, durante os dez capítulos, essa construção é muito bem pensada na concepção do universo, como se a LUMON conferisse a si mesma um valor de cultuação. Os gestos e falas cadenciados dos funcionários de alto escalão da empresa, a mitologia ao redor do Kier, as fantasias pagãs e as cabras transmitem uma religiosidade, que é adotada por algumas pessoas, como visto em Doce Vitríolo.

Dentro dessa perspectiva, Ruptura lida com o quanto as marcas influenciam em nossas vidas. McDonald’s, Marvel, Nike e diversas outras, são direta e indiretamente influentes na maneira como enxergamos e experimentamos o mundo. O show faz essas críticas a partir dos exageros, porém, é muito preciso em sua abordagem. Não há cinismo na paródia, nem mesmo um ar de superioridade, há apenas a representação por meio do escárnio. Talvez, esta seja a melhor forma de ilustrar a realidade insana, na qual empresas tentam se humanizar a partir de perfis online, de uma busca por autoridade própria – como a A24 –, enquanto os trabalhadores são cada vez mais desumanizados.

Ainda nessa linha, é interessante o arco de Milchick (Tramell Tillman). A busca pelo reconhecimento do conselho. As cobranças em cima de acontecimentos que estavam fora de seu controle e a tentativa de maquinizá-lo, o levavam a jornadas abusivas e acabavam com o seu psicológico. A grande mudança vem em Depois do Expediente, quando Mark não vai ao trabalho, sem dar grandes explicações, apenas dando a entender que tinha algo mais importante para fazer. Esse acontecimento cai como uma grande revelação, fazendo com que o personagem continue sua jornada sob outra perspectiva.

Em primeiro plano está Mark, caminhando em direção a câmera, com um terno, uma camisa branca e uma gravata. Ele está com o rosto e as roupas ensanguentadas, e olha fixamente para algo fora do plano, iluminado por uma luz branca. Ao fundo desfocado, sob uma luz vermelha está uma porta, com uma pequena janela nela. Gemma está atrás desta janela. Ela está com as mãos e o rosto ensanguentados e grudados na porta, olhando desesperadas para Mark.
⁠”Acho que esquecê-la durante oito horas do dia não é a mesma coisa que superar” (Foto: Apple TV+)

Na mitologia grega, Orfeu foi ao submundo em busca de seu amor, Eurídice. Na tentativa de trazê-la de volta ao mundo dos vivos, o filho de Apolo faz um acordo com Hades e Perséfone: ele deve sair do submundo sem olhar para trás. Próximo a saída, Orfeu não resiste a tentação e ao olhar para trás, define o destino de sua amada ao mundo inferior.

Ruptura revigora o conto – assim como fez Céline Sciamma em O Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019) – ao colocar Mark como Orfeu, Gemma (Dichen Lachman) como Eurídice e Reghabi (Karen Aldridge) como Perséfone. Entretanto, é adicionado um novo elemento nesta história: Helen. Se Mark Scout ama Gemma, seu duplo é apaixonado por Helen. Por meio de muitas brigas, os dois Marks entram num acordo de salvar a personagem de Dichen Lachman, no entanto, quando eles resgatam ‘Eurídice’, é o interno quem está no comando. Ao olhar para trás, Mark S. encontra Helen. Ele rejeita seu criador e, de mãos dadas, volta para o inferno junto a sua amada.

Se tem algo que chama a atenção para o seriado, é a capacidade de entender o humano e seus sentimentos. Muitas séries se perdem ao colocá-los de lado para focar em um ‘evento maior’, mas Severance entende como parte fundamental da construção do mundo e da tomada de decisões frente a estes grandes acontecimentos. Ainda que tenha morte, revoltas e outros assuntos grandiosos, o show opta por encerrar a temporada com o principal casal de mãos dadas correndo para o caos. Desta vez, foi Orfeu quem caiu no submundo.

Ruptura — Trailer oficial da 2.ª temporada | Apple TV+

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