
Guilherme Moraes
Depois do grande sucesso da temporada de estreia, a expectativa para a sequência de Ruptura era enorme. No entanto, apesar da ansiedade dos fãs, Severance (no original) retornou três anos depois, um tempo considerável levando em conta a velocidade com que se produz séries atualmente para agradar a demanda do público. Contudo, se o preço para uma produção de qualidade é o tempo, então que se espere mais alguns anos para a continuação, pois a 2.ª temporada mantém o nível, ao colocar Mark S. (Adam Scott) e outros internos em crise existencialista, sem perder de vista as críticas ao sistema capitalista e as jornadas de trabalho.
A primeira cena, em Olá, senhora Cobel, já nos apresenta a uma das características dessa season. Como a anterior se encerra no clímax, era esperado que retornasse naquele exato momento. Ledo engano. Ben Stiller e Dan Erickson deslocam o espectador com um suposto salto temporal. Desta forma, temos a mesma sensação dos internos, enclausurados, ansiosos, e, ao mesmo tempo, entediados, pois, intencionalmente, o capítulo joga um balde de água fria e quebra o ritmo que estava se construindo.
A quebra de expectativa é fundamental na construção de uma ideia: qualquer luta que permita a manutenção do sistema, será uma luta apenas pelos direitos básicos. Apesar de todo o esforço do quarteto, suas grandes conquistas foram necessidades imprescindíveis no ambiente de trabalho, mas nenhuma mudança significativa quanto a vida e a existência. Ao final da revolta e tudo o que vivenciaram, eles devem voltar ao serviço imediatamente.

A despeito dessas críticas, a temporada vai para um lado muito mais existencialista. Os internos começam a ter suas ‘primeiras vezes’, começando na season finale e tendo continuidade durante os novos 10 episódios; a primeira vez que viram o céu, que beijam, que dormem, que fazem sexo, que se apaixonam, que vivem de verdade. Todavia, junto com a vida, vem a morte. Após experimentarem serem humanos e voltarem à condição normal, ver seus desejos e necessidades serem negados faz eles optarem pela morte. Chocante é o momento em que Irving (John Turturro) é ‘assassinado’ em frente aos seus amigos, ou que Dylan (Zach Cherry) pede demissão, o que para os internos é sinônimo de suicídio. Os roteiristas e os diretores dos episódios Vale da Aflição e Depois do Expediente, são muito precisos em representar de maneira forte e melancólica, enquanto os funcionários da LUMON lidam com normalidade, causando uma certa estranheza.
Dentro do contexto geral, Vale da Aflição é o capítulo que melhor integra o existencialismo com as críticas ao sistema, além de fazer essa ponte entre essa mudança de foco temático. Ben Stiller lida com a solidão e a falta de amor dentro do capitalismo. O foco é colocar os personagens em um contexto desconfortável, jogando um contra o outro. Nesse sentido, Helena e Irving são o destaque, por meio da rivalidade estabelecida desde Ola, senhora Cobel. Ambos se sentem sozinhos, por diferentes motivos: Helena (Britt Lower) não recebe amor do pai, demonstrando como as relações familiares se tornam palco para negócios – ao estilo Succession (2018) –, e Irving perde Burt para a aposentadoria, evidenciando o descaso das empresas com seus funcionários. Enquanto a primeira finge ser o seu duplo (Helen) para receber afeto de Mark, Irving transforma seus sentimentos em revolta, culminando em um sacrifício em prol dos seus amigos.
De maneira gradual, Ruptura sedimenta o caminho para a revolta dos internos. A partir de Cavalo de Troia, Mark S. começa a se enxergar cada vez mais como uma pessoa, aceitando seus sentimentos por Helen e tentando viver, ainda que em um contexto desfavorável. Existe uma certa ironia, muito bem trabalhada sobre o fato de que, apesar de todas as críticas ao ambiente de trabalho, é nele em que aprendemos a viver um pouco. Conhecemos outras pessoas, fazemos amizades, namoramos e criamos laços. Enquanto isso, os externos não conseguem tocar a sua vida. Mesmo para Dylan que tem mulher e filhos, ele aparenta ser muito infeliz. Todos os ‘out’ estão muito sozinhos, não importa quantas pessoas o cercam. Paralelamente, os seus duplos conseguiram criar vínculos muito fortes entre si.

A segunda temporada aposta cada vez mais no mistério, parecendo, em certos momentos, Lost, só que um pouco mais galhofa. Antes de falar sobre o que o suspense constrói, é preciso dar o contraponto. Por vezes, a série se perde demais criando suspense para manter uma atmosfera interessante, mas vazia; suspense pelo suspense. Contudo, isto ocorre em episódios muito específicos, durante os dez capítulos, essa construção é muito bem pensada na concepção do universo, como se a LUMON conferisse a si mesma um valor de cultuação. Os gestos e falas cadenciados dos funcionários de alto escalão da empresa, a mitologia ao redor do Kier, as fantasias pagãs e as cabras transmitem uma religiosidade, que é adotada por algumas pessoas, como visto em Doce Vitríolo.
Dentro dessa perspectiva, Ruptura lida com o quanto as marcas influenciam em nossas vidas. McDonald’s, Marvel, Nike e diversas outras, são direta e indiretamente influentes na maneira como enxergamos e experimentamos o mundo. O show faz essas críticas a partir dos exageros, porém, é muito preciso em sua abordagem. Não há cinismo na paródia, nem mesmo um ar de superioridade, há apenas a representação por meio do escárnio. Talvez, esta seja a melhor forma de ilustrar a realidade insana, na qual empresas tentam se humanizar a partir de perfis online, de uma busca por autoridade própria – como a A24 –, enquanto os trabalhadores são cada vez mais desumanizados.
Ainda nessa linha, é interessante o arco de Milchick (Tramell Tillman). A busca pelo reconhecimento do conselho. As cobranças em cima de acontecimentos que estavam fora de seu controle e a tentativa de maquinizá-lo, o levavam a jornadas abusivas e acabavam com o seu psicológico. A grande mudança vem em Depois do Expediente, quando Mark não vai ao trabalho, sem dar grandes explicações, apenas dando a entender que tinha algo mais importante para fazer. Esse acontecimento cai como uma grande revelação, fazendo com que o personagem continue sua jornada sob outra perspectiva.

Na mitologia grega, Orfeu foi ao submundo em busca de seu amor, Eurídice. Na tentativa de trazê-la de volta ao mundo dos vivos, o filho de Apolo faz um acordo com Hades e Perséfone: ele deve sair do submundo sem olhar para trás. Próximo a saída, Orfeu não resiste a tentação e ao olhar para trás, define o destino de sua amada ao mundo inferior.
Ruptura revigora o conto – assim como fez Céline Sciamma em O Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019) – ao colocar Mark como Orfeu, Gemma (Dichen Lachman) como Eurídice e Reghabi (Karen Aldridge) como Perséfone. Entretanto, é adicionado um novo elemento nesta história: Helen. Se Mark Scout ama Gemma, seu duplo é apaixonado por Helen. Por meio de muitas brigas, os dois Marks entram num acordo de salvar a personagem de Dichen Lachman, no entanto, quando eles resgatam ‘Eurídice’, é o interno quem está no comando. Ao olhar para trás, Mark S. encontra Helen. Ele rejeita seu criador e, de mãos dadas, volta para o inferno junto a sua amada.
Se tem algo que chama a atenção para o seriado, é a capacidade de entender o humano e seus sentimentos. Muitas séries se perdem ao colocá-los de lado para focar em um ‘evento maior’, mas Severance entende como parte fundamental da construção do mundo e da tomada de decisões frente a estes grandes acontecimentos. Ainda que tenha morte, revoltas e outros assuntos grandiosos, o show opta por encerrar a temporada com o principal casal de mãos dadas correndo para o caos. Desta vez, foi Orfeu quem caiu no submundo.