Nathalia Tetzner
Quando Beyoncé idealiza um projeto, dá adeus aos limites e insiste até funcionar. Em sua nova empreitada, COWBOY CARTER, ela definitivamente não chega de ‘mansinho’ para cavalgar pelo country. Diante de um gênero musical financiado por uma indústria conservadora que já a alertou para ‘tirar o cavalinho da chuva’, a texana se aventura enquanto, pelo bem e mal, deixa a sua marca registrada em todas as 27 faixas.
O oitavo disco da artista mais culturalmente relevante do século – segunda peça de uma trilogia idealizada durante a pandemia da covid-19 –, é um estudo sobre as raízes do country estadunidense que atravessa a história de um país fadado ao fracasso, mas que sempre soube se reerguer através de simbologias libertárias. Assim como na arte de capa do álbum, dessa vez, Beyoncé Giselle Knowles-Carter deseja subverter conceitos.
Com uma mão carregando a bandeira, ou melhor, o fardo de uma nação erguida a custas do sofrimento do povo negro, e com a outra conduzindo o cavalo, a artista mostra que o controle de sua trajetória sonora está em suas mãos. Para isso, nosso amigo prateado queer ‘Reny’ dá lugar a Chardonneigh; ao contrário do anterior, um pouco menos coeso nas passadas, porém, imponente e concebido ao mundo como clássico instantâneo.
Além de marcar território a respeito da sonoridade, a posição grandiosa da ex-vocalista do Destiny’s Child denota uma nova era para a cultura como um todo: o cowboy core. Inspirada em filmes estilo faroeste que variam desde Cowboys do Espaço (2000) até Assassinos da Lua das Flores (2023), ela percorre uma atmosfera lendária através da perspectiva de uma mulher negra, desafiando o saudosismo e colocando o cavalo na chuva no maior estilo COWBOY CARTER.
Não será de se espantar que os cantores passem a rejeitar os instrumentos programados por softwares ou que a moda seja tomada por chapéus, fivelas e franjas – afinal, tudo que Beyoncé toca vira tendência, sendo praticamente o Midas do universo do entretenimento. Sem desistir das mudanças bruscas de sonoridade que questionam a ideia de gênero musical, a obra explora os versos tradicionais do country com aquele aspecto selvagem que só ela sabe acrescentar.
Transitando entre narrativas líricas que traduzem o cotidiano do perfil padrão dos homens brancos que passam tempo demais na estrada longe da família e a vida superficialmente luxuosa de uma diva pop, a ‘Queen B’ flerta com a estética sem soar tão irônica quanto Madonna em sua época de movimentar “no beat do tuts, tuts” com Music (2000). Ela também não se insere tão naturalmente quanto Bob Dylan, no entanto, oferece uma latência energeticamente perfeita para um rodeio.
Os dois primeiros singles retratam essa espécie de dicotomia existente em COWBOY CARTER. De um lado, produções complexas que valorizam os vocais e contam histórias, do outro, batidas dançantes trabalhadas com frases de afirmação à la Beyoncé. Se 16 CARRIAGES já é um destaque de sua discografia, TEXAS HOLD’EM reúne todos os clichês do country, o que funciona para virais nas redes sociais ao passo em que soa quase como uma paródia.
Entretanto, é inegável a presença de uma representatividade potente nas duas formas de cantar. Ambas as canções trazem instrumentistas negros que atuam no gênero, entre eles, Robert Randolph, guitarrista de pedal steel e Rhiannon Giddens, tocadora de banjo. Essa colaboração com artistas renomados em suas áreas, mas não tão conhecidos pelo mainstream, os concedeu a chance de aparecer nas paradas musicais da Billboard, catapultando por tabela os ouvintes nos streamings.
A ótima resposta que Beyoncé tem recebido do público e dos veículos de comunicação especializados demonstra a qualidade inata de COWBOY CARTER ao mesmo tempo que evidencia uma reação contrária aos acontecimentos de 2016, quando a abelha ferrenha do pop lançou a sua criação mais azeda até aquele momento, o disco Lemonade. Embora seja um projeto aclamado, a faixa Daddy Lessons não foi poupada das críticas.
Com um excesso questionável de “Yeehaw”, que permanece nas composições menos inspiradas do ACT II, a música antecipou a vontade da texana em retratar o country, porém, revelou uma certa imaturidade à época. Agora, experiente e disposta a fazer os haters morderem a língua, ela reformula a narrativa sobre comportamentos patriarcais com maestria em DAUGHTER, de longe, a melhor produção do disco que conta com a aria Caro Mio Ben.
“Diziam que eu era country demais/Então veio a rejeição, disseram que eu não era country o bastante/Disseram que eu não ia subir na sela, mas/Se isso não é country, me diga, o que é?” – AMERIICAN REQUIEM
Fazendo jus ao conceito de partição que diferencia as faixas do álbum, a cantora também se divide entre a fumaça das ruas e os corais da igreja, em um misto de religiosidade e ambições mundanas. Nas parcerias, essa transição fica nítida com as participações no mínimo inusitadas de Post Malone na sensual LEVIIS’S JEANS e Miley Cyrus – junto de sua voz ríspida que causa um conflito entre texturas vocais transcendentes –, na redenção de II MOST WANTED.
Nesse caldeirão de sonoridades, Dolly Parton enfrenta um perigo iminente: uma composição se tornar mais popular na voz de outra pessoa, novamente. Isso porque a interpretação de JOLENE ganha uma nova dimensão com a entonação dramática de Beyoncé, uma vez que a história sobre traição casa perfeitamente com os problemas familiares da família Carter, resultados da infidelidade do marido, o rapper Jay-Z.
Do mesmo modo que I Will Always Love You foi eternizada por Whitney Houston no longa O Guarda-Costas (1993), o aviso à mulher jovem de cabelo castanho-avermelhado que remonta a “Becky with the good hair” pode se sobressair em relação a gravação original de 1974, ao menos para a audiência não familiarizada com a lenda da Música country. Outro cover presente em COWBOY CARTER é BLACKBIIRD dos The Beatles que, ao contrário, não desperta tantas emoções.
Ao repetir a lista longa de colaboradores do antecessor, o primeiro ato Renaissance (2022), a intérprete de Crazy In Love parece entender que significa algo maior do que ela mesma. Ao longo de duas décadas de atividade, Beyoncé passou a simbolizar muitas comunidades, compreendendo a sua artisticidade como um grande trabalho em grupo; até porque esses dois últimos ensaios de expressões culturais tão distintas só poderiam ser feitas a muitas mãos.
Na produção do disco, D.A Got That Dope, Ryan Tedder e Pharrell Williams formam o trio principal que exemplifica os elementos do rap, pop e R&B, sempre interpolados na discografia da cantora. Entre os poucos momentos abaixo do esperado – como a cansativa SWEET ★ HONEY ★ BUCKIIN’ –, as interludes surpreendem: intituladas como SMOKE HOUR, elas trazem narrações dos ícones Willie Nelson e Linda Martell.
Durante o aprofundamento a respeito do gênero musical, até mesmo sample de funk brasileiro foi utilizado; logo após uma breve introdução de Martell, SPAGHETTII atinge o clímax através do ‘batidão’ de Aquecimento Das Danadas, autoria dos DJs Mandrake e Xaropinho. A faixa BODYGUARD também despertou a atenção do país para além da qualidade, sendo acusada de supostamente soar como plágio de um certo hit do ‘aplicativo de dancinhas’, o que não procede.
Por vezes, as guitarras animadas de COWBOY CARTER possuem mais afinidade musical com Born to Run (1975) de Bruce Springsteen do que qualquer outra obra atual. Justamente por referenciar tantos clássicos da Música, é difícil imaginar como o Grammy irá contornar as indicações de 2025 para premiar, pela quinta vez, alguém que não seja Beyoncé com o gramofone mais cobiçado da noite, o de Álbum do Ano.
“Com quinze anos, a inocência havia se perdido/Tive que sair de casa ainda muito jovem//Eu vi minha mãe orar, eu vi meu pai batalhar/Tive que deixar para trás todos os meus doces problemas.” – 16 CARRIAGES
Ainda sem visuais, nessa altura do campeonato, é de se acreditar que Beyoncé quer o foco inteiramente na Música e, seja essa técnica reproduzida ou não no ACT III, a expectativa está alta como nunca antes. Se superar Renaissance soava quase impossível, COWBOY CARTER não facilita para o terceiro ato. Fato é que, qualquer direção que a artista e seu cavalo tomem, certamente a indústria musical irá querer cavalgar junto.