Entre os dias 13 e 23 de abril, o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade voltou totalmente às salas presenciais dos cinemas espalhados em São Paulo e Rio de Janeiro. Com exibições gratuitas no Centro Cultural São Paulo, Cine Marquise, Cinemateca Brasileira, Sesc 24 de Maio e IMS Paulista, o festival teve também Sessões Especiais virtuais, exibindo nas plataformas de streaming Itaú Cultural Play e Sesc Digital sete dos nove filmes da Competição Brasileira de Curtas-Metragens e dois longas da Mostra Foco Latino-Americano (Beleza Silenciosa, de Jasmín Mara Lópeza, e Hot Club de Montevideo, de Maximiliano Contenti).
Com 72 títulos de 34 países, o festival – fundado em 1996 por Amir Labaki – homenageou dois grandes cineastas na sua 28ª edição: Humberto Mauro (1897–1983), “um dos inventores do Brasil cinematográfico”, que “impõe-se quando o próprio país e logo seu Cinema enfrentam nova reconstrução”, exibindo dez de seus filmes e dois documentários; e Jean-Luc Godard (1930–2022), com a apresentação dos oito episódios da sua série documental História(s) do Cinema (1987-1998), considerada a obra-prima da última parte de sua carreira, cujo conteúdo foi constantemente retrabalhado pelo autor e cuja produção durou cerca de dez anos.
O alcance do É Tudo Verdade, o maior festival de Documentários do mundo, é reconhecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que classifica diretamente os filmes vencedores dos prêmios dos júris nas Competições Brasileiras e Internacionais de Longas/Médias e de Curtas-Metragens para apreciação ao Oscar do próximo ano. Longe das sessões presenciais, o Persona assistiu à distância os curtas-metragens brasileiros disponíveis no streaming. Dos sete filmes da Competição Brasileira de Curtas exibidos remotamente, quatro tiveram sua estreia mundial no É Tudo Verdade, que também expôs, apenas presencialmente, Ferro’s Bar (Menção Honrosa na categoria), dirigido por Aline A. Assis, Fernanda Elias, Nayla Guerra e Rita Quadros, e O Materialismo Histórico da Flecha Contra o Relógio, de Carlos Adriano.
Mãri hi – A Árvore do Sonho, de Morzaniel Ɨramari, além de ter sua estreia mundial no É Tudo Verdade, foi o grande vencedor da Competição Brasileira de Curtas-Metragens, recebendo também o Prêmio Mistika. Produzido em parceria da ARUAC Filmes com a Hutukara Associação Yanomami, o curta do cineasta yanomami aborda o conhecimento de seu povo sobre os sonhos, com a participação e narração da liderança indígena e xamã, Davi Kopenawa. “A luta yanomami vai continuar até o fim”, disse Ɨramari.
Abaixo, você fica com a curadoria do Persona feita por Bruno Andrade, Enzo Caramori, Guilherme Veiga, Jamily Rigonatto, Nathalia Tetzner e Vitória Gomez, que deixam suas impressões sobre Os curtas brasileiros do 28º Festival É Tudo Verdade.
Curtas-metragens
Mãri hi – A Árvore do Sonho (Morzaniel Ɨramari, 17’, 2023)
Morzaniel Ɨramari enfrenta na pele os efeitos nocivos da exploração do garimpo desde os seus primeiros anos de vida. No Cinema, ele encontrou uma forma de registrar a história de seu povo, atravessada pela constante luta por direitos. Com o curta-documentário Mãri hi – A Árvore do Sonho, o primeiro yanomami a se tornar diretor foi selecionado para o Festival É Tudo Verdade, em que venceu a categoria de Melhor Documentário da Competição Brasileira de Curtas-Metragens. A obra trata da relação mística entre os moradores da “terra-floresta” e a semente de árvore que concede os sonhos ao mundo de todos.
Carregado de um olhar intimista e da narração precisa de Davi Kopenawa, Ɨramari não pretende explicar o linguajar característico ou as tradições cultivadas pela sua cultura, mas sim fazer o público experienciar algo único. Em meio ao clima monótono, é a composição sensível de alguém que vivencia tal realidade que transforma a atmosfera do filme em algo brutalmente mágico. Ao passo em que Kopenawa escreve em seu caderno e os desenhos das crianças yanomami colorem a tela, a conclusão caminha para um tema um tanto quanto universal, afinal, “com árvore do sonho nós sonhamos longe”. – Nathalia Tetzner
Cama Vazia (Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet, 5’, 2023)
“Pior que eu tenho pavor da velhice” – Cama Vazia se inicia com um áudio em fundo preto; trata-se da voz de Sônia Silk, a personagem interpretada por Helena Ignez em Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla. O Cinema marginal de Sganzerla, marcado principalmente pela ironia, emerge como referência no curta de 5 minutos dirigido por Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet. Acompanhando um homem idoso – o próprio Bernardet – em tratamento de uma doença que nunca é explicitada, enxergamos o que poderia ser sua aparente decomposição social, visto que, no pequeno filme, essa desintegração não é apenas corporal.
Montado como uma sequência de fotografias, não demora para percebermos que Cama Vazia é a documentação do tratamento contra o câncer de Jean-Claude Bernardet, também exposto por ele no livro O Corpo Crítico (2021), em que aborda a “faceta robótica” dos médicos e enfermeiros durante a terapia. É essa característica desoladora que mais fica em evidência no curta-metragem, pois sua narração compreende que seu “corpo octogenário, aidético e canceroso”, como ele mesmo descreve, é apenas um mecanismo, uma possibilidade de lucro e uma máquina que carrega o câncer, que preocupa mais os médicos do “que o portador do tumor”. No curta, o desencanto da obra é, também, um desencanto do próprio autor – negando-se a dar seguimento ao processo terapêutico –, que liga sua condição ao capitalismo e constrói, junto a Fábio Rogério, um ensaio sobre a morte na pós-modernidade. – Bruno Andrade
BAMBAMBÃ (Andréa França, 12’, 2022)
É tradicional do exercício da prática do Cinema de Arquivo a segmentação de imagens de found footage em seus míseros detalhes para descobrir, assim, algo que transpareça a realidade de um coletivo. Em No Intenso Agora (2017), o diretor João Moreira Salles olha a uma babá que fica no último plano de um filme familiar para entender as condições de classe da sociedade carioca; já em BAMBAMBÃ, Andréa França faz uma compilação de uma categoria específica de imagens – as das mudanças urbanas que atravessaram a metrópole no início do século – como uma tentativa de orientar o olhar do espectador ao seu tema de estudo.
Com Patrícia Machado na pesquisa, a diretora do curta, também professora universitária, mistura a teoria histórico-sociológica ao estudo do momento estético das imagens fotográficas e do panorama cultural da época. Assim, os movimentos gentrificadores como o “bota-abaixo” e o início da favelização do Rio de Janeiro são diretamente relacionados ao plano civilizatório de uma modernidade brasileira – que culmina nas tantas contradições que envolvem a Semana de Arte de 22 –, tudo através da análise da natureza das fotografias da época: registros amadores, por homens da elite, de uma sociedade tradicional em desaparecimento. – Enzo Caramori
Vãnh Gõ Tõ Laklãnõ (Barbara Pettres, Flávia Person e Walderes Coctá Priprá, 25’, 2022)
A barragem Norte de José Boiteux é a maior obra de contenção de cheias no Brasil. A inauguração, em 1972, deu oportunidades de trabalho a imigrantes e reduziu as inundações no Vale do Itajaí. Do outro lado, porém, desde então alaga boa parte das terras Laklãnõ/Xokleng. Os povos indígenas do local, em Santa Catarina, são mais antigos que qualquer construção ou processo social de imigração e, ainda assim, vêem sua cultura ser diluída. Do idioma às escolas evacuadas por condições precárias, Vãnh Gõ Tõ Laklãnõ remonta a história dos povos ali situados, com focos sensíveis e atentos a quem fez parte de sua construção.
É através da visão de seus próprios integrantes que o curta-metragem documental reconstrói os Laklãnõ/Xokleng: um pastor indígena que prega a fé evangélica em sua língua nativa para que esta continue viva; uma arqueóloga, Walderes Coctá Priprá (uma das diretoras da obra), discute como o preconceito do povo branco estereotipa os indígenas para minimizá-los de seus direitos: um poeta recita as consequências da instalação da barragem para os moradores locais: “de uma utilidade imensa, mas também prejudicial”. Com um trabalho de som que imerge na natureza e no cotidiano local, e uma escuta sincera a quem expõe sua verdade, Vãnh Gõ Tõ Laklãnõ venceu o Prêmio Canal Brasil de Curtas do festival, e mostra o impacto e importância do Marco Temporal no país. – Vitória Gomez
Retratos de Piratininga (André Manfrim, 17’, 2023)
Em 2021, a queima da estátua de Borba Gato, na Zona Sul de São Paulo, reacendeu o debate sobre a memória colonial amplamente resguardada na História da Arte. Rapidamente rechaçado por líderes conservadores e pela polícia, o ato apontou para apenas uma faceta da memória conservada nos espaços públicos. Fato é que o tipo de história que se quer contar – ou lembrar – também diz respeito ao tipo de sociedade que se quer criar. Borba Gato, líder bandeirante, foi apenas um dos homenageados pelas ruas da capital: no centro velho de São Paulo – região onde se encontra a Praça da Sé –, estão as estátuas do jesuíta José de Anchieta, Apóstolo Paulo (que dá nome a cidade) e Tibiriçá, indígena que se converteu ao cristianismo. O diretor André Manfrim parte desses monumentos para tentar enxergar o que eles nos dizem sobre o passado e, principalmente, sobre o presente.
Com narração de André Abujamra, Retratos de Piratininga é um filme lento, visivelmente artesanal, com caráter quase didático. Através de pesquisa sobre as obras filmadas, o curta-metragem cria um diálogo entre as imagens gravadas e a voz de Abujamra, que nos confidencia os segredos guardados pelos monumentos. Há, portanto, um filme ensaio, que parte da análise e reflexão sobre a memória preservada após a colonização – memória essa, muitas vezes, romantizada nas Artes. Trata-se de um curta que desmonta as narrativas da formação da cidade de São Paulo, que integram nosso imaginário e que, nos meandros da História, se revelam marcadas pela fé e pela violência. – Bruno Andrade
Todavia Sinto (Evelyn Santos, 9’, 2022)
O que acontece quando o positivo chega? Qual é o peso de uma decisão? Alguém é capaz de verdadeiramente entender? Sob a direção de Evelyn Santos, o concorrente da Competição Brasileira de Curta-Metragem na 28ª edição do Festival É Tudo Verdade, Todavia Sinto, não se compromete a responder, mas fomentar as perguntas que afogam uma pessoa quando a gravidez se torna uma realidade. Debaixo das águas turbulentas de emoções tão singulares, a produção mostra o ar se esvaindo de um corpo que perde sua individualização sem deixar de estar completamente sozinho.
Com as imagens misturando o movimento agressivo das ondas e os frames detalhistas da construção da imagem da mulher grávida, assistir o curta é uma experiência brilhante e extremamente sufocante. Enquanto escutamos as perguntas e opiniões de quem está fora da anatomia que carrega o feto, as escolhas parecem cada vez mais pessoais e tomadas por uma dor intransferível, inserida no telespectador como a laceração de uma faca afiada. Seja na escolha de abortar ou seguir a gestação, os olhares externos jamais deixariam de expor seus pensamentos próprios e, por mais que tentem, compreender plenamente é uma tarefa impossível. Em um oceano de complexidades, nada é capaz de dividir a verdade vivente na humanidade de quem, todavia, sente. – Jamily Rigonatto
Aos Mortos, Um Lugar para Habitar (Victor Costa Lopes, 7’, 2023)
“A melhor maneira de garantir que os mortos não causarão desordem é, não apenas enterrá-los, mas enterrar também seus restos, os seus destroços. Arquivos são uma parte desses restos e destroços”. É com a frase do filósofo camaronês Achille Mbembe que Aos Mortos, Um Lugar para Habitar, do diretor cearense Victor Costa Lopes, se ambienta a partir do relatório base da CPI da pandemia, que teve início ainda em 2021, um dos anos de pico da doença.
Muito mais que um minuto de silêncio, o curta é uma invocação de sete minutos à memória de Sandra Maria Costa Barbosa, uma das mais de 700 mil vítimas da covid-19 aqui no Brasil. Por mais que pareça pessoal, a produção é consciente ao florescer um sentimento único a cada um de nós, que, de uma forma ou de outra, fomos afetados não só pela pandemia mas também pelo descaso do governo Bolsonaro, fazendo que a Sandra e suas lembranças se transmutem em diferentes faces.
É fato que a memória é a última coisa de nossos entes que permanece viva em nós, mas Aos Mortos, Um Lugar para Habitar mostra que, devido a uma condução criminosa da pandemia, tudo que a precede nos foi tirado. Desde um diagnóstico preciso, um enterro honroso e até mesmo um tratamento confortável e digno para algo que podia ou não ser iminente. Os mortos? Foram escorraçados, e o único lugar seguro para habitar foi a nossa memória. – Guilherme Veiga
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