Geovana Arruda
A introspecção e a melancolia ganham espaço em Circles, álbum póstumo do rapper Malcolm James McCormick, mais conhecido como Mac Miller. Lançadas em 17 de janeiro de 2020, as faixas, finalizadas pelo produtor Jon Brion, contém cada pedaço da mente de um cantor e compositor brilhante, porém acompanhadas de todos os seus problemas pessoais, que ficaram ainda mais claros após esse grande monólogo de Mac.
O disco, que estava sendo trabalhado desde 2018, é como um desabafo final e uma continuação digna do álbum Swimming, ambos retratando sua luta diária contra seus próprios demônios. Em entrevista ao The New York Times, Jon Brion contou sobre o lançamento de Circles como uma segunda parte de um projeto de três etapas que Mac estava construindo, sendo Swimming a primeira: “Uma hibridização do hip-hop com a forma do som, Circles um som base, e o último seria provavelmente um álbum de hip-hop puro”.
Ao falar, visivelmente emocionado, o produtor revelou para Zane Lowe, da Apple Music, sua relação com Malcolm, tanto na construção das faixas, quanto em sua amizade. Mac estava em sua fase de mais honestidade consigo mesmo, trabalhando em letras profundas e na musicalidade baseada nos instrumentos. Brion apenas estava ali como um articulador do seu talento, incentivando-o a quebrar barreiras e não esconder nada.
Diferente do Malcolm de Blue Slide Park, que cantava sobre festas, mulheres e aventuras de um jovem que iniciava sua carreira em 2011, seu último álbum segue uma linha completamente destoante. A musicalidade sempre foi grande destaque em suas composições, e em Circles não poderia ser diferente. O disco evidencia mais instrumentos como baixo, piano, violão e bateria, ao invés de apenas os beats virais do hip-hop e trap atual, pendendo para o jazz, funk e R&B contemporâneo.
Um adendo, se na quarentena você foi adepto ao estilo lo-fi para se concentrar nos estudos e no home office, com certeza irá viajar com as batidas melódicas de Circles. Apesar de não ser low fidelity e, muito pelo contrário, ter uma produção excelente e de ótima qualidade musical, o estilo de grande parte das trilhas é suave.
A musicalidade do disco lembra alguns outros cantores e, apesar das letras profundas, é perfeita para ouvir em tardes quentes em que você só quer relaxar. No único feat presente na obra, Hand me Down, o rapper australiano Baro Sura casa sua voz perfeitamente com a de Mac, lembrando muito produções de Frank Ocean. Já em Complicated, podemos facilmente remeter os sintetizadores à Redbone, de Childish Gambino; e, ainda em Hands, relembrar o álbum Cool Tape Vol. 3, de Jaden Smith.
Juntamente com a discografia, 14 vídeos foram lançados em seu canal do Youtube para, de certa forma, ilustrar as músicas e sentimentos de Malcolm. Animações psicodélicas, repetidas e minimalistas fazem você viajar mais ainda na mente de um músico tão criativo, divertido e talentoso. Sabe aquela pergunta: o que se passa na cabeça dele? Os clipes tentam respondê-la transmitindo a sensação de estar no imaginário de Mac Miller, como, por exemplo, na faixa que dá nome ao álbum, Circles, em que o cantor aparece sentado em posição reclusa, de olhos fechados, em cima de uma águia que está voando.
Com naturalidade, por todas as faixas temos a rouquidão da voz que transparece a solidão e o abandono de alguém que estava constantemente tentando se manter sóbrio, assim canta em Woods: “Eu, amo? Posso obter o suficiente? Não fuja, amor. Odeie o amor, o desgosto o levará à falência. Muitos dias em transe, é melhor acordar”. Os versos relatam um pouco sobre sua trajetória com a depressão e o uso de drogas, ambos presentes em boa parte da sua vida e já conhecidos abertamente pelos seus fãs e seguidores.
Mac sempre criticou a forma como a sociedade lida com as celebridades, em constante cobrança sobre tudo que fazem ou deixam de fazer, principalmente tratando-se da internet, e em suas músicas não foi diferente. O carro-chefe do álbum, Good News, trata justamente sobre isto: “Não eles não gostam quando estou para baixo, mas quando estou voando oh, isso os deixa tão desconfortáveis, tão diferente, qual a diferença?”. Essa fiscalização sobre sua vida acaba se tornando uma espécie de gatilho para seus problemas, afinal, como diz na música, sua sobriedade não é notícia, mas o seu consumo de drogas também incomoda.
Após 2 anos de sua morte por uma overdose acidental, no dia 7 de setembro de 2018, seu álbum póstumo soa como um epílogo e uma verdadeira nudez de sua alma. A música Blue World, que utilizou o sample de It’s a Blue World do quarteto The Four Freshmen, é um alívio em meio ao caos e um escape de esperança: “Acho que enlouqueci, a realidade é tão difícil de encontrar. Quando o demônio tenta te chamar, mas porra, eu sempre brilho… É, bem, esse mundo perturbado me deixou louco. Talvez eu simplesmente me vire, fazer um 180°”. Com uma batida mais agitada e diferente das outras faixas, mesmo ainda trazendo a pegada existencial do Circles, a música carrega a vontade de Mac de dar a volta e deixar suas problemáticas para trás.
Depois do término de Mac Miller com a cantora Ariana Grande, em maio de 2018, ficou evidente que suas batalhas eram interiores, e sua música virou reflexo delas, principalmente depois da cantora revelar em seu Twitter um pouco sobre o rompimento com seu ex-namorado. Muitos psicólogos dizem que é preciso estar bem consigo para estar bem com o outro, mas Malcolm e Ariana conviviam com as tentativas dele em se manter sóbrio.
A sua relação com a artista com certeza marcou até seus últimos dias. Em parte das faixas de Circles, o amor romântico, a saudade e a construção de uma família são resquícios desse relacionamento tão amado pelos fãs e memorável para ambos. Em I Can See é possível ouvir uma voz feminina ao fundo, que levou admiradores do casal à loucura pois imagina-se que seja a voz da cantora.
O que parecia ser apenas o desfecho positivo desse ciclo que era a vida de Malcolm, Surf e Once a day finalizaram o disco com uma volta por cima de todas essas problemáticas perambulantes por suas músicas, trazendo a esperança de dias melhores. Mas, felizmente, em abril de 2020, o álbum ganhou sua versão Deluxe, com duas novas faixas: Right, falando sobre o amor e saudade, possivelmente de sua tão amada ex-namorada; e Floating, que parece ser um aconchegante adeus.
O adeus se concretizou, de fato, no dia 31 de outubro de 2018, em que a família de Malcolm promoveu o Mac Miller’s A Celebration of Life. O show/tributo foi, assim como Circles, uma verdadeira homenagem póstuma para um grande artista. Cantores amigos de Miller, como SZA, Travis Scott, Miguel, Chance The Rapper, Anderson Paak e John Mayer, fizeram um verdadeiro concerto de emoções ao cantarem músicas de Malcolm, falando majoritariamente de se manter positivo diante a vida.
Circles pode parecer apenas mais um álbum póstumo, mas é um presente que irá tocar a vida de todos para sempre. Ele é, nada mais nada menos, que a própria personificação de Mac Miller: um artista jovem, cheio de criatividade, com talento que transborda musicalidade, e que, assim como muitos de nós, enfrenta a sabotagem do seu próprio eu. Enxergar, em meio a todos os conflitos, esperança, gentileza e honestidade eram as especialidades dele. E, para nós, fica a sua lição.