Caroline Campos
O ano era 1986 e os Titãs estavam irados. O Brasil começava a limpar os pulmões da fuligem dos militares e respirar o ar fresco da democracia quando, em 25 de junho, Cabeça Dinossauro saiu do escuro dos esgotos para fazer barulho na cena musical brasileira e enterrar os fósseis caretas remanescentes dos anos de chumbo. Com 13 faixas, o terceiro álbum da banda que contava com Arnaldo Antunes, Nando Reis, Paulo Miklos, Branco Mello, Tony Bellotto, Sérgio Britto, Charles Gavin e Marcelo Fromer foi uma experiência verdadeiramente punk rock que gritou na cara do sistema capitalista e das instituições hipócritas daquela terra sem lei dos anos 80.
Depois de dois discos que não foram muito bem recebidos pelo público e da prisão de Tony Bellotto e Arnaldo Antunes por porte de heroína, o octeto estava desacreditado da própria carreira. Mal eles sabiam que, quando gravassem Cabeça Dinossauro, iriam atingir principalmente uma juventude descrente e sem perspectiva que passava pela crise econômica deixada de herança pelos militares. Tanto foi que o álbum se tornou o primeiro disco de ouro dos Titãs, batendo a marca de 250 mil cópias vendidas em um ano.
Mesmo que o Brasil já estivesse sob comando de José Sarney, Cabeça Dinossauro enfrentou obstáculos significativos por conta do teor de suas letras. A censura, que demorou muito para se descolar das entranhas institucionais, foi bater na porta da banda e tentar munir o lançamento do disco – tarde demais, já que o público havia mergulhado de cabeça na agressividade descontrolada dos paulistanos. O marketing reverso foi tão eficaz que os shows passaram a ficar lotados, as rádios optaram por pagar as multas estabelecidas pelas canções proibidas e os Titãs entraram definitivamente no quarteto sagrado do rock nacional.
A produção do registro ficou, pela primeira vez, a cargo de Liminha, ex-baixista dos Mutantes. O músico foi peça fundamental para traçar com precisão a sonoridade desejada pela banda, e não demorou muito para ser apadrinhado como o nono membro do grupo. Liminha laçou toda aquela confusão rebelde e converteu no que se tornou o Cabeça Dinossauro, que equilibra a própria raiva e o descontrole em uma coesão musical polêmica e deliciosa.
Os quase 39 minutos de som não deixam ninguém escapar; sobra para a polícia, para a Igreja, para as leis e até para os que não fazem nada. Toda aquela revolta, muito bem justificada no contexto em que o disco foi lançado, contagiou os que estavam de saco cheio do sistema e, literalmente, quebrou as casas de show por onde os oito marmanjos passaram destilando um caos hipnotizante.
Para quem esperava um pop família quando colocou a bolacha para rodar pela primeira vez, escutar Cabeça Dinossauro, a faixa de abertura que intitula o álbum, deve ter sido um choque e tanto. A percussão de Liminha e os três versos – cabeça dinossauro, pança de mamute, espírito de porco –, praticamente vomitados por Branco Mello, dão início a um manifesto sonoramente selvagem contrário à barbárie do capitalismo. Tirem as crianças da sala, pois o som titânico só estava começando.
A temática do disco é clara: estamos insatisfeitos e queremos berrar. Apesar de Aa uu manter a qualidade de sua antecessora, ela é mais passível de se dar uma bela respirada e aproveitar os vocais carismáticos de Sérgio Britto bradando sobre uma espécie de sujeito-máquina. O clipe da faixa ganhou uma exibição no Fantástico, que foi responsável por popularizá-la a ponto de virar até trilha sonora de novela da Globo.
No entanto, seguindo em frente, é preciso garantir que aquela tal respirada seja bem longa, pois o folêgo desaparece durante as canções seguintes. A que melhor exemplifica essa insanidade transgressora do momento é A face do destruidor, que levou embora o pulmão de Paulo Miklos. Localizada entre Porrada, de Arnaldo Antunes, e Estado violência, escrita por Charles Gavin, os 38 segundos da música beiram o incompreensível e com certeza geraram muito bate-cabeça nos shows do grupo oitentista.
Igreja e Polícia podem dividir o crédito quando se trata de polêmica. Enquanto a primeira, criação de Nando Reis, fazia um Arnaldo Antunes cristão e ofendido deixar os palcos pela crítica à religiosidade fingida, a anarquista Polícia de Tony Bellotto rememorava a arbitrariedade policial e a opressão exagerada ainda marcante no Brasil de Sarney. Hoje, essa canção é quase um hino contra os agentes da lei, que seguem deixando um rastro de sangue preto e pobre pelo caminho de suas botas.
Apesar das duas composições darem o que falar, é Bichos escrotos que rouba a cena underground. Com Miklos novamente nos vocais e Antunes, Reis e Britto nas entrelinhas, a faixa que datava 1982 já havia sido proibida de entrar em discos anteriores dos Titãs. Devidamente gravada e parte de Cabeça Dinossauro, foi a demanda absurda do público que fez as rádios pagarem a multa para tocá-la. Logo, um sonoro vão se fuder! ecoava na casa da família tradicional brasileira. De longe, a canção mais satisfatória do disco.
Depois de tanta porradaria, é até engraçado ouvir Família na voz melódica de Nando Reis. Beirando o reggae, a letra do cotidiano é o oposto do primitivismo impresso nas suas antecessoras. Ao lado da inconformada Tô cansado, que fechou o lado A do vinil, é a parte mais light dentre tanto nervosismo cantado. Claro que isso não influencia em absolutamente nada na qualidade do conceito de Cabeça Dinossauro – todo mundo que berra demais precisa parar para tomar um gole d’água. O álbum encontra seu lugar melhor ainda nas suas gravações mais tranquilas.
Assim como Bichos escrotos, Homem primata é, até hoje, um dos maiores sucessos do grupo. O capitalismo selvagem da selva de pedra paulistana ganhou um ritmo com guitarras marcantes e outro vocal de Britto. A letra, também engavetada, teve participação de Ciro Pessoa, que integrou a banda até 1983 e, infelizmente, faleceu depois de contrair covid-19 em 2020. Dívidas e O que, as duas com o dedo unânime de Arnaldo Antunes, finalizam os quarenta minutos de ira explosiva de uma das bandas mais importantes do nosso rock. A experiência acaba; a revolta, nem tanto.
Cabeça Dinossauro veio para chutar as portas da indústria musical brasileira e meter porrada nos dinossauros autoritários e vazios que se rastejavam pelo país. Como todo disco que entra para a história, sua atemporalidade é impressionante, principalmente se lembrarmos que os bichos escrotos decidiram sair dos esgotos de vez em 2018. Além disso, o disco de 1986 poderia ser facilmente trilha sonora do espectro político atual – tragicômico, eu sei. Independente, uma coisa é fato: putos da vida, os Titãs lançaram um clássico.