Leandro Gonçalves
Alternativa aos poderosos vocais, de Whitney Houston à Mariah Carey, e às açucaradas boybands e girlgroups vibrantes que dominavam as paradas musicais, Britney Spears surgiu como uma promessa revigorante ao cenário pop no final dos anos noventa. A ambígua imagem feminina da jovem conquistou rapidamente o público, e seu estrondoso sucesso fez com que seu nome fosse comparado, ainda que precocemente, a grandes mulheres da indústria, como Madonna. A figura eloquente que reunia nuances de inocência com características de Lolita encarnava a virtude atrativa do feminino, instrumento lucrativo aos monopólios fonográficos.
Promissora, a carreira de Spears trilhou uma curva crescente. Emplacando diversos sucessos, seus discos conquistaram números expressivos de vendagem, consagrando-a como mais bem-sucedida artista adolescente da história. Evidências do amadurecimento pessoal da cantora, os álbuns refletiam o desabrochar de uma cândida menina que passava a conhecer e aproveitar o próprio corpo e sua sensualidade. Suas apresentações performáticas, mesclando coreografias afiadas à efeitos visuais estonteantes, e estética – os dourados cabelos louros e a calça de cintura baixa, por exemplo – marcaram a cultura popular e influenciaram comportamentos da geração que a acompanhou durante seu crescimento.
Gradualmente, Britney deixou de ser o exemplo ideal às meninas do modelo tradicional de família americana. Ao assumir um tom cada vez mais provocativo e tomar decisões arbitrárias aos anseios do público, como se casar com o fracassado dançarino de caráter duvidoso Kevin Federline, a artista perdeu a aura de American Sweetheart. Vista com cautela, a cantora se afastou da música e dos palcos e redirecionou seus esforços para a constituição familiar. Tornou-se mãe à medida que os tabloides associavam seu nome a polêmicas que levaram as pessoas a questionarem todas as esferas de sua vida privada.
Determinada a enfraquecer os rumores sobre seu casamento e rebater as acusações feitas a sua conduta, Britney afirmou sentir, em declaração à revista eletrônica Dateline, em 2006, que sua segurança, privacidade e respeito estariam sendo retiradas de si. Naquela ocasião, a vulnerável mulher posicionada diante do entrevistador, ainda à espera de seu segundo filho, não evocava quaisquer imagens construídas no decorrer de sua carreira, virtuosa ou sexualizada. Prestes a cair publicamente, ela assumira a figura entristecida de uma mãe intimidada pelos excessos da imprensa.
Fragilizada, Britney esforçava-se para manter inteiras as enfraquecidas estruturas que lhe davam sustento. Porém, a não moderação da exposição de sua vida pessoal, o sensacionalismo midiático e a perseguição dos paparazzis contribuíram para a espetacularização do seu cotidiano. Rumores e especulações afetaram sua relação com o público ao passo que as polêmicas relacionadas a ela tornaram-se maiores que suas contribuições artísticas. A música deu lugar ao consumo nocivo e desregulado de sua imagem. O conturbado casamento, por sua vez, e o problemático término envolvendo disputas judiciais contribuíram para a ruína pública da cantora.
Assumindo um comportamento imaturo, Britney tornou-se presença constante nas noites entre Los Angeles e Las Vegas. Ao lado de companhias questionáveis, protagonizou momentos reprováveis, como infrações de trânsito, bebedeiras incontroláveis, vexames públicos e agressões.
No entanto, somente em fevereiro de 2007 que as ações desregradas de Spears se tornaram emblemas de seu colapso. Após invadir um salão de beleza na Califórnia, Britney raspou a cabeça e, no mesmo mês, agrediu um fotografo. Esses momentos, capturados pelas centenas de lentes que acompanhavam a artista ininterruptamente, ganharam as capas dos tabloides acompanhados de manchetes pretensiosas.
O conteúdo negativo associado a Spears não lhe dava espaço para justificativas. O público, acusador, questionou seu papel materno. Desfigurada pela imprensa, perdeu a guarda dos filhos e foi internada diversas vezes em clinicas de reabilitação. Assim como temia, a artista perdeu o resquício de privacidade que mantinha e se viu desprotegida e desrespeitada. Contudo, mesmo diante destes inquietantes acontecimentos, lançou sem quinto álbum de estúdio, Blackout (2007).
O trabalho levanta questões sobre o gerenciamento de carreira da artista. Lançado em um período conturbado de sua vida pessoal, soa como uma aposta oportunista e comercial da gravadora. A ausência de composições assinadas pela intérprete – somente duas faixas são creditadas à Britney – denotam pouco envolvimento dela na construção lírica do álbum, o que torna questionável sua participação além da contribuição dos vocais, e põe em cheque a autenticidade do disco.
Ademais, Blackout ainda traz consigo velhas desconfianças à autonomia artística de Britney e sua capacidade de gerenciar o própria carreira. Acusada de ser um produto da indústria fonográfica desde seu apogeu, a artista foi colocada em estúdio para converter seu caos cotidiano em valores rentáveis para a gravadora. Amparada por compositores astutos e produtores competentes, Britney não parecia estar à frente do próprio disco, mas sim condicionada por agentes diversos com interesses não relacionados a sua saúde e bem-estar.
Composto por quinze faixas, a obra traz construções de sentido que se assemelham a relatos autobiográficos, porém não há sensação de pessoalidade. Alternando entre tons de ironia e súplica, Britney canta sobre sua relação com a mídia. Em “Gimme More”, música que dá início a tracklist, entoa de maneira alegórica sobre como a imprensa e o público consomem sua imagem. Fanáticos por sua degradação, pedem para que lhe deem mais – entretenimento através das polêmicas, talvez.
A composição seguinte, “Piece Of Me”, assume um caráter mais direto. Debochada, Britney expõe de maneira sarcástica seu impacto midiático e assume diversos papeis a ela associados pela imprensa – “Senhorita meu Deus, essa Britney é sem vergonha!”, “Senhorita estilo de vida dos ricos e famosos”, ironiza. A conturbada relação com os paparazzi e a dependência do consumo de sua imagem ganham espaço em versos adicionais.
Outras narrativas também são trabalhadas no decorrer do disco. Paixões luxuriosas e relações de poder entre a interlocutora e seu amante, a contemplação do amor e idealização do sujeito, o sexo e a confidencialidade, a submissão e a insegurança são temas levantados. Todavia, poucas faixas não assumem sentidos ambíguos que remetem a sexualidade.
O disco, como um todo, é provocativo e sexualizado. Nele, Britney deixa de lado a voz infantilizada de sua identidade artística e assume timbres maduros e sóbrios, porém diferentes daqueles mostrados em seu trabalho predecessor, In The Zone (2004), onde propôs uma maior versatilidade vocal. Em Blackout, Spears canta sem pudores.
A sonoridade do disco, por sua vez, é genial. Com produções de Danja (“Promiscuous“) e Bloodshy & Avant (“Toxic“), a progressão sonora do disco é coesa e assume tons carregados durante a maior parte do tempo. Os instrumentais são pesados e acompanham a voz de Britney enquanto apresenta nuances sedutoras, provocativas, irônicas e melódicas. Risadinhas entoam imoralidade e atrevimento nas letras cantadas e ritmos diferentes são propostos ao canto de Spears pelos vocais masculinos de Danja. Por outro lado, a cantora abusa de artifícios para corrigir a voz em algumas faixas, como “Toy Soldier”.
A obra influenciou diretamente os trabalhos musicais desenvolvidos no final da década passada. Responsável por oferecer um caminho alternativo à popular sonoridade de produtores como Timbaland, o disco impulsionou o EDM (Eletronic Dance Music) e contribuiu para a popularização dos sintetizadores. A sonoridade do pop moderno proposto por artistas como Lady Gaga e Katy Perry foi fortemente influenciada pelo álbum de Spears. O êxito na mesclagem entre os sons pop e eletrônico visto nos últimos anos é reflexo do impacto do álbum da artista aliado a outros fatores.
Inicialmente visto com desdém pela crítica especializada, o disco hoje é apontado por fãs e especialistas como o melhor trabalho musical de Spears. Moderadamente intenso, o álbum ridiculariza a imprensa. Fruto da exposição midiática desenfreada de Britney, a qual desencadeou sua pública derrocada, o trabalho expôs ainda mais a artista ao público e à mídia, carrascos impiedosos.
Ao direcionar seu conteúdo ao apagão pessoal da interprete, o disco e seus agentes – a gravadora, principalmente – parecem dizer à imprensa que também são capazes de lucrar em cenários inférteis. Colocada à disposição para o consumo não comedido de sua imagem, Britney, enquanto pessoa, fica à margem.
O trabalho é, apesar da qualidade incontestável, resultado imprudente da indústria musical associada à demanda da cultura popular. É a expressão última do proveito comercial de um artista em prol de suas fraquezas humanas. Ainda que soe particular, Blackout não é um trabalho pessoal. O disco intenciona demonstrar que Britney está ali, íntegra e debochada diante das adversidades.
Porém, afetada e desgastada, ela travava batalhas internas e externas. Buscava o equilíbrio psicológico-emocional e lutava pelos filhos e redefinição de seu espaço privado. Superações e restruturações eram o que pareciam interessar a ela naquele momento. O disco, portanto, era almejo de terceiros.
Degrau inicial para o legítimo retorno de Spears, Blackout foi um clarão na discografia da artista. O disco contribuiu para que Britney mantivesse sua música em evidência até o lançamento de Circus (2008), seu trabalho seguinte, no qual mostrou-se artisticamente mais engajada. Encarregado de redirecionar a musicalidade da cantora, o disco ainda transformou sua relação com a imprensa. Antes vista como um alvo passivo, a postura mais agressiva proposta pela álbum, embora não tão genuína, atestam que ela não é mais tão inocente.
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