Boy From Heaven desnuda a política por trás da religião

Vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes, Boy From Heaven integrou a seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra SP (Foto: Pandora)

Bruno Andrade

Há sempre um suspense em torno de tramas políticas. Talvez o mistério seja o formato mais funcional em atrair a atenção do público para o assunto – mais do que serena, a política é sempre mortalmente séria. Ainda assim, é através das eleições que os indivíduos percebem sua importância social; é a manifestação contemporânea que, apesar dos ataques, mais tem resistido às mudanças pós-modernas, mesmo que a maneira e os motivos pelos quais se vote sejam diametralmente outros. Em períodos normais, se vota pelo futuro; em momentos perigosos, se vota para cessar a destruição. Sob essa perspectiva, Tarik Saleh, diretor e roteirista do premiado Boy From Heaven, longa que integrou a seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, vislumbra como o mundo está constantemente inventando maneiras de garantir o resultado desejado.

Adam Tala (Tawfeek Barhom), filho de um pescador, recebe o priviégio de estudar na Universidade de Al-Azhar do Cairo – instituição anexada à mesquita de mesmo nome –, o epicentro político do islamismo sunita. Pouco após sua chegada na cidade, a maior liderança religiosa da universidade, o Grande Imã, morre repentinamente. Entre as figuras religiosas e a elite egípcia, Tala logo se torna uma peça central em torno dessa morte. Contudo, Boy From Heaven aponta que o processo eleitoral no país sequer finge ser democrático: o candidato escolhido é selecionado por um pequeno Conselho Supremo de Acadêmicos, cujas considerações e motivações do voto jamais serão exteriorizadas para o mundo.

Boy From Heaven, de Tarik Saleh, foi indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes (Foto: Pandora)

Tarik Saleh, que desde de 2017 não pode entrar no Egito sob risco de ser preso, depois do lançamento de seu penúltimo filme, O Incidente no Nile Hilton – que discute também a corrupção política no país –, dobra a aposta no novo lançamento. Devido a essa restrição pessoal, as gravações do longa precisaram ser feitas em Istambul, na Turquia, e a Universidade de Al-Azhar na verdade é a Mesquita Süleymanye. Ao longo do filme, o diretor amplia sua discussão sobre os desvios governamentais para preencher o cargo religioso mais alto da nação, mostrando os interesses por trás da eleição do candidato escolhido pelo presidente. “A terra não pode sustentar dois faraós”, diz o general Al Sakran (Mohammad Bakri), ordenando ao coronel Ibrahim (Fares Fares) que torne o seu concorrente pessoal eleito.

Mas o que deixa Boy From Heaven ainda mais interessante é que, sob nenhuma perspectiva, Tarik Saleh tenta manchar a fé do Islã. Seu roteiro desenvolto mostra como o perigo reside, sempre, nas apropriações egoístas e delirantes pelo poder, que na prática não obedecem aos ensinamentos dogmáticos. Esse tratamento, por si só, aponta a grande diferença que o mesmo tema vem recebendo de cineastas ocidentais ao longo dos anos. Submissão da Suécia no Oscar 2023, o longa chegou aos cinemas da América do Norte sob o título Cairo Conspiracytalvez numa tentativa de deixá-lo mais comercial.

Com o título original Walad Min Al Janna, o longa chegou à Mostra SP sob seu título em inglês, Boy From Heaven (Foto: Pandora)

Na história, Ibrahim tem um infiltrado dentro da universidade há tempos, que é assassinado logo no início, devido a sua falta de discrição e erros consecutivos. Em busca de um novo “anjo”, o coronel cruza com o protagonista Adam – um calouro nos estudos e também na vida adulta, distante da própria casa. Em muitos aspectos, a trama desse personagem se assemelha à narrativa de Stoner (1965), romance de John Williams sobre um jovem de família rural aceito na Universidade do Missouri para estudar Ciências Agrárias (após uma aula de Literatura, ele muda seu curso para se dedicar à escrita, de forma silenciosa e escondida, com medo da reação do pai). No longa, Adam é aceito na universidade e seu progenitor, um indivíduo conservador e abusivo – que bate nos três filhos pelo erro de um –, aceita com ressalvas, apenas porque “não se pode ir contra as vontades de Alláh”. É nesse contexto que Adam Tala se torna o espião perfeito para o coronel Ibrahim: um indivíduo descartável em todos os aspectos, um simples pescador invisível aos olhos do governo.

Na verdade, Boy From Heaven se desenvolve como um thriller político funcional e interligado, com o islamismo e as conveções estadistas do país como pano de fundo. Nesse sentido, lembra O Profeta (2009) – vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes e que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2010 –, sobre o jovem muçulmano Malik El Djebena (Tahar Rahim), que tenta sobreviver em uma prisão francesa. A similaridade entre ambas as produções está no que o longa de 2022 evidencia no seu título: trata-se da construção mítica de um personagem que, oculto, segregado à pobreza e escolhido diante de muitos, é destinado a mudar os rumos de uma nação, como a própria escolha de uma figura divina.

Boy From Heaven, cuja trama é ambientada no Egito, foi filmado na Turquia e Suécia, e teve produção na França, Finlândia e Dinamarca (Foto: Pandora)

Mesmo que o suspense em torno da trama seja, em muitos níveis, convencional, o entorno e o tratamento previsto no roteiro – merecidamente premiado – guarda o verdadeiro mérito do filme. Além desse cuidado, Boy From Heaven se trata também de uma história sobre amadurecimento, um coming of age repaginado que, diferente do que se convencionou a fazer nas produções do gênero, mostra o protagonista entendendo a vida adulta sob a ótica corrupta e perigosa. Não se trata de melancolia ou de sofrimento, propriamente, mas da percepção de que a vida agora é como está, e sua única alternativa é se tornar mais esperto do que aqueles que pretendem te dominar.

Por isso Adam Tale perde, paulatinamente, sua inocência. Mais próximo ao fim, no qual todo o clímax da trama está guardado, após negociar com o cego Sheik Negm (Makram Khoury) – evitando, assim, sua morte –, todos, inclusive o general, olham para Adam como se ele próprio fosse o Grande Imã. Iluminado pela sabedoria, ele retorna ao campo e é questionado sobre o que aprendeu na universidade, sem poder jamais dizer tudo o que fez. Talvez a moral seja essa: não é sobre o que se aprende, mas sobre o que se ensina – essa é a nossa marca no mundo.

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