Caroline Campos
Feminicídio, necrofilia, violência doméstica e golpes virtuais. É essa série de crimes que Ilana Casoy e Raphael Montes escolhem para desenvolver o mundo do sistema penal de Verônica Torres, escrivã na Delegacia de Homicídios da cidade de São Paulo. Bom dia, Verônica, o resultado final, foi lançado pela Darkside Books em 2016, quando seus autores ainda se escondiam sob o pseudônimo de Andrea Killmore. Identidades reveladas, não demorou muito para conseguirmos uma adaptação – e ela chegou em outubro de 2020, pelas mãos da Netflix.
A vida de Verônica se transformou completamente depois que seu pai, o delegado Júlio Torres, foi descoberto envolvido em um esquema de corrupção e, na hora de sua captura, foi baleado junto com sua esposa. A escrivã carrega nos pulsos o efeito que esse evento causou, mesmo que, na surdina, seu pai tenha sobrevivido – em estado vegetativo. Desde então, Verônica, que é interpretada por Tainá Müller na série, passa seus dias protocolando documentos e todas as burocracias que Wilson Carvana, delegado titular e amigo íntimo de seu pai, a pede. Frustrada com o cargo, não demora muito para nossa (anti?) heroína se deparar com um caso que a arrasta para o submundo das escórias de São Paulo.
O estopim ocorre logo no início da obra. Marta Campos surge na delegacia aos prantos para falar com o delegado titular. Depois de ser desacreditada e ignorada, deixando claro a ineficiência do Estado em lidar com mulheres violentadas, Marta comete suicídio bem na frente de Verônica, que resolve tomar o caso para si, com ou sem aval de seu chefe. E é logo nesse momento que visualizamos a sede de justiça da protagonista no combate ao tratamento hostil que essas vítimas são obrigadas a encarar no momento da denúncia. Mesmo que Bom dia, Verônica se perca em suas próprias escolhas narrativas, ambas as Verônicas – do livro e da série – tomam para si a necessidade de vingar os casos que cruzam o seu caminho, na mesma moeda em que são cometidos.
Com o decorrer da trama, entram em cena Janete e seu marido, Tenente Coronel Cláudio Brandão. No livro, Janete é a única que divide a narrativa com Verônica, e não seria por menos – Brandão é um serial killer tirado direto das produções hollywoodianas. Depois que sua mulher atrai com propostas de emprego garotas jovens que acabaram de chegar na rodoviária, todas vindas do Norte do país, Brandão as leva para um bunker no meio da Serra da Cantareira e as tortura enquanto são penduradas por ganchos direto na pele. Janete ouve tudo com uma grande caixa de madeira em sua cabeça, que só tem buracos na direção dos ouvidos. O arco do casal é o mais envolvente de Bom dia, Verônica, abrindo feridas gigantescas na memória brasileira – um país onde, a cada duas horas, uma mulher é morta vítima de violência.
Camila Morgado foi a escolhida para dar vida a Janete na adaptação da Netflix, dirigida por Izabel Jaguaribe, Rog de Souza e José Henrique Fonseca. A submissão e o medo da esposa, que é constantemente agredida e humilhada, está em cada olhar de esguelha ou postura curvada que Morgado imprimi em tela, gerando a empatia e o desespero do espectador – ou, de forma mais íntima, da espectadora. Janete é mais uma vítima de uma sociedade machista, com um marido que a afastou de sua família e de qualquer fonte de confiança para quem ela poderia denunciar. Não é surpresa que a mulher veja Verônica como um porto seguro, repleta da paciência e sensibilidade necessárias para lidar com uma situação desse nível de perigo.
Eduardo Moscovis divide as cenas com Morgado, interpretando o sádico Brandão. Sua crueldade é impressionante, e cada vez que Moscovis entra em cena, a tensão o acompanha intrinsecamente. Não há como relaxar com Brandão ao seu lado. Todo diálogo com Janete vira um jogo entre gato e rato – ele a encurrala, oprimi, diminui. A calma assustadora e controlada que cerca Brandão foi um desafio difícil para o ator, que não podia extravasar em decorrência do espectro comedido e covarde do personagem, que mal sobe o tom de voz ameaçador que dirige a esposa.
É com essa figura imponente da Polícia Militar que Verônica resolve bater de frente. No entanto, durante a leitura da obra, podemos ver uma policial que está mais preocupada em concluir o caso sozinha do que salvar Janete, de fato. A atitude irresponsável e egocêntrica da Verônica literária em diversas situações coloca ainda mais em risco a vida de quem ela tenta proteger a todo custo. Tainá Müller com certeza deu mais carisma para a personagem, mas a mudança foi brusca, como se para transformar a protagonista em uma versão mais “limpa” do que era, mais atrativa para os espectadores. Na adaptação, Verônica tem um bom relacionamento com a família, rejeita as investidas de companheiros de trabalho e preza, acima de tudo, pela segurança das vítimas que conhece. Atitudes que a escrivã do livro está muito longe de ter.
As obras dialogam bem entre si, com mudanças pontuais que excluíram arcos toscos e mal trabalhados. Nas páginas, Gregório, o golpista do site Amor Ideal, é um adepto da necrofilia – fato que, de início, causa grande impacto no leitor, mas, no fim, só serve para certas escolhas serem mais fáceis e convenientes para Verônica. Colocar um assunto tão desconfortável e incômodo, sabendo que mulheres não alcançam a paz nem depois de mortas, e, depois, descartá-lo de maneira extremamente pobre sem muitas consequências é uma atitude curiosa de Casoy e Montes, ambos escritores já reconhecidos quando se trata de literatura policial e de terror.
Pelos méritos do roteiro, a necrofilia foi removida e a história de Gregório deixada um pouco de escanteio, com um final semelhante, mas muito mais satisfatório e inteligente. A própria trama que envolve o esquema de corrupção de diversas fontes de poder não existe no livro, mas foi uma adição bem sacada à série, que garantiu que o final dos oito episódios fosse muito mais condizente do que o final das 256 páginas. Por outro lado, Anita, interpretada pela belíssima e competente Elisa Volpatto, destoa um pouco desse lado positivo. Criada para a série, parece que a personagem só foi adicionada para, constantemente, fazer oposição a Verônica, sendo uma antagonista sem nenhuma faceta além da aparente maldade e falta de comprometimento com seu cargo de delegada.
A trilha sonora escolhida para a trajetória da escrivã não poderia ter sido melhor. Se em Maria da Vila Matilde, hino contra o feminicídio, Elza Soares afirma que cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim, Verônica está determinada a marcar esse arrependimento em seus demônios. As músicas complementam cada final de episódio, desde Cabeça-Dinossauro, clássico do rock nacional dos Titãs, até a romântica Coração Selvagem, do mestre Belchior. As faixas contam histórias em parceria com os grandes momentos que elas entoam.
A segunda temporada da série ainda não foi confirmada, mas, devido à grande aceitação do público, podemos esperar que a Netflix dê uma chance para fortalecer as produções nacionais, visto que Ilana Casoy e Raphael Montes já confirmaram uma sequência para o livro. Acompanharemos uma Verônica loira e justiceira lidando com seus inimigos do próprio jeito, independente do sangue derramado. Se a continuação é necessária, cabe a cada um a resposta. Mas o cenário policial brasileiro é, com certeza, um bom palco para tramas mirabolantes de ficção.
Para os ferrenhos defensores que acreditam que o livro é sempre melhor que sua adaptação, Bom dia, Verônica prova o contrário. Apesar de ser uma obra literária rica, o formato de série conseguiu deixar a narrativa mais interessante com suas mudanças e minimizar os defeitos marcantes que estão presentes em suas páginas. A violência contra a mulher é um problema de todos e deve ser combatida enfaticamente. Se você está ou conheça alguém que esteja nessa situação, denuncie. Não se cale, porque, mesmo na ficção, Janete não é um caso isolado. Disque 180.