Giovanne Ramos
Desde a primeira manifestação literária no Brasil, o Quinhentismo, muitos temas foram inspirações para nortear clássicos da literatura. Os indígenas, a vida interiorana, o adultério, a miséria e a decadência humana são apenas algumas das premissas que se repetiram em diversas obras brasileiras. Mas ao que se diz respeito à homossexualidade, poucos foram os autores renomados a ousarem em se aventurar em escrever algo próximo do cotidiano romântico entre dois homens ou duas mulheres. Até 1895, no Brasil, era praticamente impossível. Mas foi Adolfo Ferreira dos Santos Caminha, um dos expoentes da escola naturalista, o pioneiro em retratar sobre o assunto com a obra Bom-Crioulo, até hoje considerada por muitos como o primeiro romance desta temática em toda literatura Ocidental.
Se ainda hoje a homossexualidade é tratada como tabu em diversos âmbitos, ou até mesmo um pecado religioso, o assunto não era visto de maneira mais cordial pela sociedade do final do século XIX, período no qual a obra de Caminha foi lançada. A recepção não foi nada positiva entre literários renomados da época. Valentim Magalhães, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras define o volume como excedente a tudo que é “grosseiramente imundo”, “livro podre”, “romance-vômito”. Em sua coluna ‘Semana Literária’, o renomado crítico José Veríssimo definiu em 1895 para o Jornal do Comércio que “Bom-crioulo é pior do que um mau livro: é uma ação detestável, literatura à parte”.
Mas afinal, o que consta de tão repudiável em Bom-Crioulo? O romance é protagonizado por Amaro, ex-escravizado foragido, que serve para o exército na sua nova vida como homem livre. Vale ressaltar aqui que se trata de uma figura negra. Em alto mar e ao decorrer do livro, ele desenvolve uma paixão por Aleixo, de 15 anos, que é descrito de maneira antagônica ao personagem principal. O jovem é apresentado com um semblante delicado, branco, olhos azuis e com uma certa ingenuidade que o faz ceder às investidas de Amaro, com quem desenvolve uma relação homoafetiva e homoerótica. A trama então se desenvolve em torno destas duas figuras, das suas relações, conflitos e desfecho trágico.
Um traço de toda obra naturalista, como o caso dos clássicos O Cortiço de Aluísio Azevedo e O Ateneu de Raul Pompeia, é a radicalização da descrição do ser humano sem o menor pudor. Temas sociais ganham nessa manifestação um olhar crítico e um tanto quanto científico de suas personagens, cruzando com a sensualidade, a polêmica e todos os assuntos que uma roda elitista de leitores se sentiriam escandalizadas ao assumir que são reais e reflexos de algumas realidades do país. O que traz a reflexão do que é criticado não é a abordagem nem maneirismos estilísticos do autor, e sim o que ele está retratando. As já citadas críticas de Magalhães e de Veríssimo se entrecruzam em uma questão moral, o fato da obra retratar “vícios bestiais” e discutir “nauseantes crimes contra a natureza”.
Percebe-se marcado no imaginário da época um certo preconceito pela discussão e retratação da homossexualidade, encobertos por trás de um moralismo julgando o enredo desinteressante e contra leis naturais. Esse pensamento não foge também da visão do autor, que na primeira relação sexual entre as personagens, descreve-a sendo como uma consumação do “delito contra a natureza”. A relação homoafetiva ainda é retratada com descrédito, uma vez que dá a subentender que não se tratava de um interesse mútuo e sim resultado de um investimento insistente de Amaro sobre Aleixo, que cede por interesse, curiosidade e impulsividade.
Mas a temática da sexualidade não é o único ponto controverso na obra, a construção do imaginário racial também pode ser percebido. Logo nas primeiras páginas de Bom-Crioulo é possível notar a construção viril de Amaro, destacado por ser “corpulento e colossal”. Em outros momentos, o homem é comparado com uma fera desencarcerada e rude como um selvagem, mesmo que o seu apelido bom-crioulo remeta à figura de um negro dócil e obediente. Em contrapartida, Aleixo é apresentado com os mais dos positivos adjetivos “belo marinheiro de olhos azuis” e “principezinho entre os camaradas”, se assemelhando a uma figura menina dada a sua efeminação. Colocando em perspectiva a negatividade da figura negra retratada na literatura.
Entre outras características de Amaro, consta o seu vício por álcool e a falta de controle quando embriagado, se tornando uma figura violenta, sem controles e brutalmente precipitada. Essa série de estereótipos reforça dentro do literário e para além dele, como o negro é retratado e visto pela sociedade: associado à vícios, brutalidade e irracional. Inclusive, não é uma novidade do naturalismo reduzir determinadas figuras à meros selvagens, houve também o indianismo, tendência dentro do romantismo onde indígenas foram retratados de maneira idealizada com ‘bom-selvagem’.
No entanto, as críticas aqui feitas não valem para um cancelamento da obra e nem do seu autor. Bom-Crioulo se torna importante em dois pontos. O primeiro deles é pelo seu pioneirismo em retratar assuntos que são tabus até hoje, numa época não melhor que a nossa em relação a receptividade da homossexualidade e da relação interacial. Em segundo, o livro demonstra como um registro, o quão datado é o preconceito em cima dessas temáticas e como devemos naturalizar o que julgam como paradigmas de debates sociais. Mas assim como qualquer obra, minimamente atemporal, devemos visitá-la com cautela e criticar com discernimento temporal para que não seja enaltecida por suas falhas. A obra erra ao estereotipar de forma racista a figura negra, onde podemos observar na contemporaneidade dentro de publicidades, na televisão ou em âmbitos pessoais.