Jho Brunhara
Quando eu era adolescente, tinha medo de me expressar por ser gay. Tinha medo ir em festas, ficar bêbado com meus amigos e revelar acidentalmente que não era hétero. Pela necessidade de esconder minha sexualidade por proteção, tinha medo de vestir as roupas que gostava, de dizer o que que pensava, de colocar um “nós” antes de “pessoas LGBTQ+”.
Eram, de certa forma, problemas banais, mas ao mesmo tempo questões muito importantes no ecossistema do colégio e na mente de alguém com 15 anos. Não me sentia verdadeiramente seguro em casa, nem na escola, nem em nenhum lugar. Me assumi nos últimos meses do Ensino Médio, um pouco antes de completar 18 anos. Enquanto a maioria das pessoas da minha idade que eu conhecia já tinham vivido suas próprias aventuras, eu pude, pela primeira vez, me sentir livre, e experimentar a adolescência que idealizava na minha cabeça.
A juventude tardia se concretizou ao estudar em uma universidade longe de casa, e eu não estava sozinho: nas festas, aulas, projetos e eventos eu me juntava à centenas de meninos, meninas e menines LGBTQ+ que brilhavam os olhos em enxergar uma virada de mundo que nossos amigos héteros não conseguiam entender. Blue Neighbourhood de Troye Sivan, que completou meia década em dezembro desse ano, captura um pouco do sentimento do que é ser adolescente não aos 14, mas aos 18, 20 ou mais tarde. E enquanto caminhamos para um futuro onde crianças queer possam ser elas mesmas e crescer em paz, muitos de nós ainda sonham com a liberdade de apenas viver a juventude, com todos seus tropeços e glórias.
Troye também se assumiu tarde para o mundo. Com 18 anos, em 2013, ele postou um vídeo em seu canal do YouTube, que hoje acumula quase 9 milhões de visualizações. Dois anos depois, aos 20, seu debut Blue Neighbourhood foi lançado. Desde muito cedo em sua carreira, Sivan já era tratado como ‘cantor gay’, título que, para uma estrela pop em ascensão, poderia custar absolutamente tudo. Mas o efeito foi o oposto. A Vizinhança Azul do sul-africano naturalizado australiano foi um marco para o pop ‘adolescente’, e por mais que o artista não seja pioneiro em erguer a bandeira LGBTQ+ no gênero, foi um espelho para a geração de jovens crescendo na internet, e um sinal verde para as grandes gravadoras investirem em artistas assumidamente queer.
A jornada de Blue Neighbourhood se inicia onde muitos de nós também partimos: lidar com sentimentos proibidos. Antes de se assumir para os outros é necessário se entender e se assumir para si mesmo. É mais difícil ainda quando internalizamos a homofobia projetada do mundo exterior, e condenamos nossos desejos e vontades. Mas não há como resistir quando esses impulsos são verdadeiros, e a autoaceitação é sem retorno. Tudo que vem depois são grandes exclamações e interrogações por um mundo que pouco protege seus jovens, e muito menos tenta entendê-los.
Para Troye, e para muitos de nós, a vontade mais parece uma prisão. “Me beije na boca e me liberte”: BITE canta sobre as primeiras vezes e como se entregar ao desejo é agoniante e ao mesmo tempo um alívio. O primeiro amor, o primeiro beijo, a primeira vez. Blue Neighbourhood é uma ode ao novo, uma celebração ao renascimento e à juventude tardia, mas ainda extremamente genuína. A paixão, aqui, é a linha que costura todo o disco. Do início ao fim, as letras parecem ter saído diretamente de um diário, em que lemos e nos identificamos com todas as confissões.
No ápice das primeiras paixões, o artista dessexualiza o desejo, e a honestidade só implora por afeto e carinho. TALK ME DOWN é um dos pontos mais altos da Vizinhança Azul. Em uma composição meio Lorde com violino, Sivan entregou uma das melhores canções de sua carreira. Sufjan Stevens também já cantava há muito tempo sobre amar tanto alguém ao ponto de sentir como um irmão, e aqui a vulnerabilidade emocional encontra uma relação em comum quando se é LGBTQ+. Não que seja regra, mas quando se passa tanto tempo da vida depositando sentimentos verdadeiros em uma caixinha interna fechada a sete chaves, a carência é um dos efeitos rebote.
Ainda sobre Lorde, é impossível falar sobre juventude na Música depois de 2013 sem citar seu nome. A gigantesca Ribs abriu portas e inspirou para sempre a nova geração do indie pop, Troye incluso. Essas letras sobre um mundo pequeno, quase escondido, de hábitos mundanos mas que representam as verdadeiras sensações do que é se sentir jovem estão em todos os tijolos de Blue Neighbourhood. Aqui, a inocência de sentir que tudo deve ser deixado para trás se junta à euforia e ao medo. Não um medo ruim, mas um frio na barriga, de que nada vai ser como antes.
E tudo é diferente. Mas essa não é a primeira adolescência, é a segunda, que carrega bagagem. Mesmo que se fuja para longe do passado, ele ainda é parte inerente da alma. “Não posso substituir meu sangue”, canta em SUBURBIA. Mas BN não fala aqui de memórias ruins, traumas e o sentimento anterior de estar preso em uma realidade imutável. Essa nostalgia é da inocência intocada, de momentos em que as angústias podiam ser deixadas de lado. Do cheiro que o ar tem quando se é criança, da forma com que o tempo passa diferente, dos gostos e sensações puras, de descobrir como o mundo funciona.
O novo mundo que vem com o amadurecimento é árduo, ainda mais quando se é queer. Sivan vem de uma família judaica, e ainda que tenham aceitado sua sexualidade, foi um processo complicado, como é para a maioria de nós. Se Bloom pôde ser lançada anos depois, é porque HEAVEN abriu caminho antes. A balada, produzida por Jack Antonoff, co-escrita por Grimes e cantada também por Betty Who, ecoa: “Todo meu tempo perdido sentindo que meu coração estava errado/Se eu estiver perdendo uma parte de mim, talvez eu não queira o Céu”.
Quantas crianças e adolescentes LGBTQ+ já não rezaram pedindo à Deus para que se tornassem heterossexuais? Quantas foram dormir se perguntando se Deus realmente as odiava? Quantos adultos ainda lutam contra a verdadeira pessoa que são por medo imposto pelas religiões? É esse Céu que Troye não quer pertencer, e é esse Céu que muitos de nós também renegamos. Blue Neighbourhood se projeta como um álbum adolescente por alguns de seus temas ‘bobos’, mas todas essas questões ainda são consequências diretas da homofobia, de crianças que foram reprimidas e de adolescentes que não puderam ser verdadeiros por medo.
Cinco anos depois do lançamento do disco, esses jovens que ouviam as músicas do álbum sonhando com o futuro e o próprio cantor amadureceram. No processo, Troye se mostrou uma casa de máquinas queer em Bloom, e uma força maior ainda no EP In A Dream. Hoje, ele se junta aos artistas LGBTQ+ que cantam por nós e para nós, como Adam Lambert, Frank Ocean, Hayley Kiyoko, King Princess, Christine and the Queens, Rina Sawayama, Yves Tumor, Conan Gray, Lil Nas X e tantos outros.
Blue Neighbourhood celebra as pequenas e grandes sensações de se sentir jovem, a angústia de se assumir e a ansiedade de enfrentar o mundo para se sentir livre. E, principalmente, cria uma atmosfera própria de um universo azul, onde podemos nos identificar ou sonhar. No fim do dia, ainda somos uma grande vizinhança, tentando entender sentimentos e alcançar a verdadeira igualdade, que vai muito além de direitos básicos e respeito mínimo.
O futuro, ainda pequeno, é esperançoso: graças à todos que lutaram por mudanças, já colhemos frutos. Como o talentosíssimo Isaac Dunbar, de quem podemos ouvir suas histórias já na primeira adolescência, e tantos outros jovens LGBTQ+ se assumindo tão novos e recebendo o transformador apoio da família e amigos. Porém, o caminho ainda é longo, e talvez para a maioria de nós ainda seja limitante antes de ser libertador. Blue Neighbourhood conta apenas uma versão de uma história singular com milhões de protagonistas, mas é uma forma de dizer para os mais jovens e mais velhos: estamos aqui, estávamos antes, e sempre estaremos.