Alerta de gatilho: abuso, violência doméstica, estupro, aborto, suicídio.
Giovanna Freisinger
Blonde, produção que reimagina a história de Marilyn Monroe, proporcionou a Ana de Armas sua primeira indicação ao Oscar. Concorrendo pelo título de Melhor Atriz por sua interpretação da personagem, ela desponta como forte candidata ao prêmio. Apesar da citação não vir como uma surpresa, após indicações em outras premiações importantes, como o Globo de Ouro, o SAG Awards e o BAFTA, as respostas do público à essa nomeação foram divididas. Isso não em relação ao merecimento da atriz por sua performance, mas à inclusão do filme na premiação em primeiro lugar, cedendo visibilidade e prestígio à obra, que, para muitos, faria melhor ao mundo sendo esquecida.
60 anos após sua morte, o nome e a imagem de Marilyn Monroe ainda são distorcidos a fim de se encaixarem na fantasia de terceiros. Há uma noção sobre a qual essas pessoas se apoiam, de que elas têm esse direito, como se, por ter sido uma figura muito pública, a identidade de Marilyn estivesse disponível para quem quiser projetar seus desejos e crenças sobre ela. Andrew Dominik, diretor e roteirista de Blonde, se provou uma dessas pessoas, demonstrando que, mesmo após pesquisar extensivamente sobre a vida da atriz, não nutre respeito algum pela sua história e identidade, ao fazer um filme de péssimo gosto, emprestando sua relevância cultural.
Blonde não é mais um filme biográfico. É uma história de ficção, baseada no livro de mesmo nome, escrito por Joyce Carol Oates e publicado em 2000. A história aproveita aspectos da vida real de Monroe e a visão do público sobre ela para discutir questões psicológicas e sociais mais abrangentes. Sob esse pretexto, Dominik direciona a narrativa para servir suas intenções questionáveis. A familiarização prévia da audiência com a personagem o permite explorar apenas os aspectos mais sombrios da biografia (como uma compilação de seus piores momentos), sem oferecer contexto ou contraste com as demais partes da vida dela. O livro original tem 738 páginas, das quais muitos aspectos, reais e fictícios, foram descartados na seleção do autor do que achava relevante contar em sua obra.
O problema de Blonde não está na ficção, mas em nenhum dos trechos inventados servir para elevar a personagem ou a narrativa além de uma representação extremamente redutora de uma mulher icônica. As cenas são resumidas à sexualização e à tortura da protagonista, muitas vezes com essas se sobrepondo, deixando a audiência desconfortável durante toda a duração do filme, sem entregar compensação nenhuma alheia ao valor de choque. Durante todo o longa, o esforço aplicado transparece para que o espectador sinta algo. Esforço esse que não encontra resultados satisfatórios perante à abordagem rasa tomada.
Com menos de 20 minutos, temos a primeira cena de abuso sexual. Ao realizar um teste de elenco, Monroe é estuprada por Sr. Z (David Warshofsky), personagem que faz referência implícita a Darryl F. Zanuck, então chefe da Fox, emissora em que conseguiu seu primeiro emprego. Zanuck é, hoje, conhecidamente um agressor sexual, que violou muitas atrizes que trabalhavam para sua companhia. No entanto, não há qualquer registro de que esse tenha sido o caso de Marilyn – nem com ele, nem com qualquer outro produtor. O que há, na verdade, são diversos registros da atriz prestando um papel essencial na luta contra o teste do sofá, prática, infelizmente, típica para a década de 50.
A partir daí, a narrativa se modela com base nos relacionamentos da protagonista. O trisal formado com Charlie Chaplin Jr. (Xavier Samuel) e Edward G. Robinson Jr. (Evan Williams), apesar de completamente fictício, parece apresentar um escape para a personagem, como uma forma de atribuir mais controle a ela sobre o que quer. A relação é apresentada a partir da ideia de que eles são os únicos que a veem por quem ela é, a Norma Jeane por trás do mito da Marilyn Monroe e, em retorno, ela os vê apesar do estigma de seus pais famosos. Essa talvez seja a concepção mais interessante do roteiro, mas promete algo que não entrega. O breve tempo do relacionamento na tela não é expandido para muito além das cenas de sexo, privando a audiência dessas facetas além da fama.
A violência doméstica mostrada em seu casamento com o jogador de beisebol Joe DiMaggio (Bobby Cannavale) realmente corresponde aos acontecimentos da vida real, mas, ainda assim, é impossível ignorar a fetichização da mulher fragilizada nessas cenas, o que torna essa abordagem do tema difícil de engolir. Mais adiante, sua famosa relação com o então presidente John F. Kennedy (Caspar Phillipson) é abordada brevemente, representada de forma fria e violenta, enquanto, fora da ficção, não há qualquer relato de o contato tenha sido abusivo ou não consensual, e esse nem é um rumor comum, o que faz a interpretação parecer, mais uma vez, as mãos de Dominik sobre ela. Ver o filme culpá-la por seu destino e retirar suas escolhas, ao mesmo tempo, é no mínimo estranho.
Além da violência de seus relacionamentos e os contrapontos da fama, uma das principais questões que permeiam Blonde é a maternidade e, como se pode imaginar, a abordagem soa terrível vindo do roteiro de um homem. A personagem passa por três abortos, todos acompanhados de sequências aterrorizantes. Os dois não espontâneos foram forçados a ela por terceiros, a colocando perante a violação das suas vontades e do seu corpo. O espontâneo é antecipado por uma simulação do feto em CGI, com um diálogo telepático bizarro que a coloca em uma espiral de culpa, diante de uma propaganda, não tão bem velada, anti-aborto.
A frequência e a intensidade das cenas com o teor apelativo e violento tornam o filme, supostamente sobre os danos experienciados por um sex symbol em Hollywood e a psique humana, no condescendente rebaixamento de uma mulher notória, sob uma visão moralista de que sua queda é decorrência de sua promiscuidade, que arruina sua vida e seus relacionamentos. Somos, enquanto audiência, convidados a assisti-la sofrer e a alimentar essa fantasia de punição. Para um projeto que conversa com o modo como a indústria tratou a protagonista, falta autoconsciência.
Diante dessas circunstâncias, perdemos qualquer aspecto de quem foi Marilyn Monroe além de seu rosto, seu corpo e seus traumas. Ela foi a mulher mais importante de Hollywood da sua época, senão de todos os tempos, e não graças a seu rosto bonito (como sempre existiram milhares), mas ao seu talento transcendente, que captava o público. Marilyn sempre soube o que estava fazendo diante das câmeras.
Por isso, é tão desconcertante acompanhar um filme que empresta sua imagem, se baseia em sua história e despreza o que a levou ao sucesso. Talvez, Blonde, como um todo, fique menos confuso diante do que o autor tem a dizer. Em entrevista à jornalista Christina Newland, para a revista do Instituto de Cinema Britânico, Dominik afirma que Monroe se tornou um ícone cultural estrelando em vários filmes que “ninguém realmente assiste” e se referiu a Os Homens Preferem as Loiras – obra estimada quase que de forma unânime entre críticos de Cinema, como uma das melhores comédias já feitas – como um filme sobre “vadias bem vestidas”.
Grande parte do apelo de Blonde, junto à atuação incontestável da Ana de Armas na pele da protagonista, é seu visual, com imagens lindas e escolhas estilísticas ousadas de direção de câmera, responsabilidade do diretor de fotografia Chayse Irvin, e arte, graças ao diretor de arte Peter Andrus, junto a toda a equipe de efeitos visuais. Porém, não há nada para sustentá-las. Além dos jogos de câmera, luz e efeitos especiais, pode-se reparar que a proporção de tela não é estável e as cenas alternam entre coloridas e preto e branco. Quando questionado por Newland sobre o propósito dessas escolhas, o diretor explicou que não há razão para a narrativa, o que ele queria era apenas reproduzir fotografias famosas. Assim, seguiu seus formatos, como uma forma de conhecer a vida da personagem, visualmente.
Além disso, houve um empenho para adequar Ana de Armas ao papel, desde as mudanças físicas, com o cabelo e a maquiagem, nos departamento comandados por Jaime Leigh McIntosh e Tina Roesler Kerwin, até o treinamento de sua voz, sotaque e maneirismos. O esforço de Blonde para se assemelhar à realidade não é incomum em histórias biográficas – mas, novamente, não se trata de uma história biográfica. Se dedicar a alcançar a memória coletiva, para então alterá-la, pintando sobre ela tragédias e misturando os limites entre verdade e ficção, não parece a forma mais ética de abordar uma história baseada em uma vida real, mesmo que dentro de sua liberdade criativa.
O descaso com a representação de problemas psicológicos
Andrew Dominik, em sua entrevista com Newland, contou que, inicialmente, queria contar uma história sobre como os dramas da infância moldam a percepção de um adulto sobre o mundo e que viu em Blonde essa história. Porém, ele peca no desempenho dessa ideia ao centralizar toda a narrativa nos traumas vividos pela personagem. Isso resulta em um roteiro ineficiente, já que, sem a contemplação dos contrastes e nuances, o trauma e os conflitos apresentados ficam, além de rasos, irrealistas, como uma experiência que só poderia ter sido fabricada para propósitos dramáticos.
A partir dessa representação, o diretor cria também uma relação desonesta de dicotomia, sob a qual uma pessoa levada ao suícidio não poderia ser nada além de trágica. Com isso, ele reduz a humanidade da personagem a seus problemas e a mantém refém do papel de vítima em seu roteiro, tomando dela o controle sobre sua vida.
Na conversa com Newland, ele também defende sua abordagem redutora com afirmações como “qualquer pessoa que se mata não é uma figura de empoderamento feminino”, demonstrando as limitações de seu ponto de vista. Marilyn foi uma figura de empoderamento feminino, ao mesmo tempo que foi uma história de alerta às mulheres sobre os efeitos de uma sociedade patriarcal. Ela foi e ainda é ambos, justamente porque não era um arquétipo de personagem, mas uma pessoa real.
Para um artista que se propõe desde o princípio a produzir uma obra sobre questões psicológicas, suas origens e seus efeitos na vida adulta, a representação de Dominik é fraca e caricata, ao reduzir pessoas deprimidas a indivíduos unidimensionais. A menção do longa entre os reconhecidos pelo Oscar 2023 é, realmente, impressionante quando além de ser insincero, é extremamente entediante assistir uma personagem rasa como Marilyn é em Blonde.