Apesar de pecar em alguns pontos, adaptação de “Assassinato no Expresso do Oriente” mostra de forma competente o universo da autora ao público contemporâneo
Guilherme Hansen
Agatha Christie é uma das autoras mais aclamadas da literatura policial. De Miss Marple a Hercule Poirot, seus quebra cabeças atraem leitores do mundo todo, mesmo passados 41 anos de sua morte. Logo, é esperado que quando alguma de suas obras é adaptada para o cinema, o resultado seja correspondente ao nível de sua literatura. E, sem dúvida, Assassinato no expresso do Oriente, escrito originalmente em 1934 e lançado em 2017 sob a direção de Kenneth Branagh (Thor, Cinderela), que também interpreta o detetive Belga, traduz bem o que foi escrito pela britânica.
A história é (aparentemente) simples. Um trem que está partindo pela Europa conta com alguns passageiros que nunca se viram antes. Um deles é o ilustre detetive Hercule Poirot, que embarca no trem de última hora a férias. Seus planos são frustrados quando Edward Ratchett (Johnny Depp), um comerciante com relações escusas, é assassinado friamente a bordo e ele é convencido a investigar quem matou Ratchett e por quê.
Assassinato no expresso do Oriente é bem fiel à obra homônima, tanto na sequência dos acontecimentos, quanto em seus detalhes singulares. Para deixar um exemplo, Ratchett é assassinado às 00:37, hora que é mostrada rapidamente na cena. Outra estratégia mantida no longa é o fato de alguns personagens terem atitudes escusas que os tornam suspeitos em potencial. Mc Queen (Josh Gad), o assistente de Ratchett, foge de Poirot para queimar documentos, pois roubava seu patrão. Debenham (Daisy Ridley), que já estava na mira do detetive, é interrogada por ele, já que a governanta é flagrada em uma conversa suspeita com o Coronel Arbuthnot (Leslie Odom Jr.). Este, por sua vez, atira em Poirot, o que constitui o clímax da história.
Um dos grandes méritos do romance é que conforme a história vai se desenrolando, o leitor mergulha na obra e se interessa em saber os rumos e detalhes daquele crime, além de fazer palpites dos assassinos devido à construção minuciosa dos fatos feita por Christie. Mas no filme, os acontecimentos são processados de uma maneira mais rápida que o esperado, e as descobertas de Poirot são jogadas ao público. Portanto, para quem não leu o livro, não será possível entender como o detetive faz as associações que o fazem descobrir o (a) assassino (a) de Ratchett; Já para quem já leu, Assassinato no expresso do Oriente deixa uma sensação de lacuna em relação ao caráter detalhista da obra. Apesar da impaciência do público em nossa sociedade contemporânea, talvez se a película tivesse uma duração superior a duas horas, o problema se resolveria.
Outra falha da adaptação é a representação caricata de alguns personagens, apesar de eles possuírem um grande aspecto humano. Enquanto a princesa Dragomiroff do livro é uma mulher solícita (até demais) e pronta a ajudar Poirot em suas investigações, no filme, ela é simplesmente uma aristocrata ranzinza. Outro exemplo é o Conde Andrenyi, que de um homem controlador, se torna gratuitamente violento na adaptação. Embora isso não comprometa o enredo, enfraquece o longa.
A fotografia é um caso à parte. É muito interessante o contraste entre a ambientação polar, obviamente com cores frias e ambientação dentro do trem. Os figurinos dos personagens e os detalhes dos vagões têm uma coloração mais vibrante, com tons terrosos, indicando um ambiente aquecido. Outra estratégia interessante usada por Branagh é o posicionamento da câmera em momentos estratégicos. Quando Ratchett é morto, Poirot e seus colegas o localizam em câmera alta. Isso serve para que o público tenha a nítida impressão de que o assassino está no trem e os observando. Isso continua quando seu corpo é mostrado após o crime, o que faz com que o público tenha uma maior noção de como ele morreu.
O elenco também merece destaque. Além de Branagh, que transmite toda a ironia e sagacidade do detetive, merece menção as atuações de Penélope Cruz, que vai bem no papel de uma missionária contida e Michelle Pfeiffer, que esbanja talento e contagia o público com sua efusiva Mrs. Hubbard.
O livro é baseado no caso de Charles Lindbergh Jr., ocorrido em 1932. À época, o garoto de 1 ano e oito meses foi sequestrado em sua casa, nos Estados Unidos. Seus pais, apesar de pagarem o resgate exigido, encontraram o filho somente depois de morto. O crime chocou a opinião pública e o algoz da criança, o alemão Richard Hauptmann, foi condenado à morte em 1935. Agatha Christie acompanhou os desdobramentos do caso e, aproveitando o fato de que era uma assídua viajante de trens para lazer, se inspirou para escrever “Assassinato no expresso do Oriente”, um de seus maiores sucessos, quando um dos trem que viajou ficou emperrado na neve temporariamente.
Assassinato no expresso do Oriente, ainda que não seja perfeito, consegue empolgar pelos belos detalhes visuais e pelo bom roteiro que reapresenta ao público o fantástico universo da escritora (vale lembrar que o livro já foi adaptado ao cinema em 1974, com nomes de peso como Albert Finney, Anthony Perkins e Ingrid Bergman, que levou o Oscar de melhor atriz coadjuvante naquele ano). Resta esperar que a já confirmada adaptação de Morte no Nilo, outro clássico da “Rainha do crime” corrija esses pequenos erros para que possa, então, se tornar uma obra memorável.