Criadora de Gilmore Girls e The Marvelous Mrs. Maisel, Amy Sherman-Palladino deu um novo olhar para as mulheres na Comédia
Vitória Silva
Cidade de Stars Hollow, fundada em 1779. Uma jovem mulher senta-se em uma mesa na cafeteria do Luke, após implorar para o mesmo por mais uma xícara de café, que ele responde com um olhar zangado – enquanto pega mais café para ela. Um cara flerta com ela e é rapidamente driblado por seu sarcasmo, e com a jogada de que ela está esperando alguém. Esse alguém entra pela porta, é a sua filha, Rory, chateada porque perdeu seu CD da Macy Gray e “precisa de cafeína”. E é essa mesma rotina que você vai observar pelos próximos 153 episódios de Gilmore Girls.
Um dos grandes sucessos da Televisão norte-americana nos anos 2000, o seriado surgiu da curiosa mente de Amy Sherman-Palladino. Nascida no dia 17 de janeiro de 1966, em Los Angeles, filha do comediante Don Sherman e de Maybin Hewes, seus primeiros passos no meio artístico vieram – acredite ou não – por meio da dança. Treinada no balé clássico, e com possibilidade até de estrelar o musical Cats, a californiana não pensou duas vezes quando precisou largar sua carreira para integrar a equipe de roteiro da série Roseanne. A partir disso, começou a trilhar seus primeiros passos no que se tornaria uma longa caminhada na comédia.
Ela integrou a equipe do programa para escrever sua terceira temporada, que foi ao ar em 1990, e saiu em 1994, após a sexta. A partir disso, continuou participando de diversos outros seriados, colecionando uma série de sucessos e fracassos, com Love and Marriage, Over the Top e Veronica’s Closet. Como tentativa final para finalmente poder criar uma obra própria, Amy apresentou a ideia de criar uma série sobre mãe e filha, mas em que “elas são mais como melhores amigas”. Pronto, foi o golpe fatal para conseguir comprar todos os executivos.
Assim, as ruas e casas da fictícia cidadezinha de Stars Hollow passaram a ser construídas. Como centro da narrativa de sua estreia, estavam as garotas Gilmore: Lorelai (Lauren Graham) e sua filha Rory (Alexis Bledel). Explorar a boa relação entre mãe e filha já é acolhedor por si só, quem dirá em uma cidadezinha onde tudo e todos parecem ser extremamente acolhedores. Em meio aos caricatos habitantes e a rotina extremamente peculiar do município, Sherman-Palladino ergueu o cenário do que seria o grande ato de sua carreira, e, como estrela principal, a personagem que se tornaria um dos maiores ícones da comédia televisiva.
Lorelai Gilmore é uma mulher vinda de uma família da alta sociedade, e viveu um dos principais imprevistos que qualquer jovem garota é ensinada a temer: a gravidez na adolescência. Diante da repulsa da família, ela fugiu para a pacata cidade para criar sua filha, também Lorelai – apelidada no seriado como Rory, é claro. E sua grande motivação em vida é criá-la para que ela não cometa os mesmos erros provenientes de sua própria rebeldia. O desenrolar da primeira temporada se dá na tentativa de reatar laços com seus pais, Richard (Edward Herrmann) e Emily (Kelly Bishop), com o objetivo de que eles pudessem pagar pelos estudos da neta.
Mesmo que sob um plano de fundo de drama familiar, o que move os episódios da trama é o tradicional cotidiano de tomar café no Luke’s, ir nas reuniões da cidade, observar as polêmicas do Taylor (Michael Winters) com os habitantes, e por aí vai. O pilar que sustenta tudo isso é a relação entre Rory e Lorelai, que viria a constituir o que seria o âmago da comédia de Amy Sherman-Palladino: a rapidez. Com um timing cômico extremamente apurado, a roteirista e também produtora-executiva do seriado constrói diálogos extremamente velozes entre mãe e filha, repletos de tiradas e dezenas e dezenas (e dezenas) de referências à cultura pop, tornando a dinâmica entre as duas fascinante por si só. A simplicidade com que são incorporadas as dosagens de alusões a filmes e seriados da época faz com que, caso não entenda a que o diálogo se refere, o problema com certeza é você.
Tudo isso é ancorado na figura da atraente Lorelai. Uma mulher sensual, no auge da beleza dos seus 30 anos, mas que jamais assume essas características como o seu principal atrativo, já que ele se encontraria em nada mais, nada menos, que o sarcasmo. E é nessa personalidade que Sherman-Palladino originaria um dos atos mais subversivos que os anos 2000 poderiam trazer, ao centrar todos os holofotes da comicidade de sua produção em uma mulher. Se atualmente já é difícil associar personagens femininas como grandes figuronas da Comédia, imagine o cenário há 20 anos.
Se as luzes brilham para Lorelai, talvez o oposto ocorra com Rory. Por mais que complete perfeitamente a sagacidade de sua mãe, a irreverência da mesma com certeza não é uma característica herdada. Mas a sina da personagem talvez seja as condições completamente utópicas da vida em que foi criada. Rory é a filha, a neta e a namorada perfeita. A criança prodígio, capaz de conquistar tudo que estivesse ao seu alcance apenas por sua inteligência e dedicação. E, mesmo assim, ela consegue tomar as piores decisões possíveis a todo momento. Daí outro grande ato que Amy Sherman-Palladino viria criar: rompendo com idealismos aos quais as “boas garotas” sempre foram condicionadas, ela origina uma personagem que é uma verdadeira divisora de opiniões. Nas grandes expectativas que a envolvem, Rory erra incessante e irritantemente, mas não erramos todas nós?
Fale pela rapidez cômica, mas o grande dom da roteirista está, com certeza, na construção de suas personagens femininas. Vamos tratar não apenas de Rory e Lorelai, mas também de Emily, Lane (Keiko Agena), Paris (Liza Weil), Sookie (Melissa McCarthy) Miss Patty (Liz Torres), Babette (Sally Struthers)… Todas as mulheres que em seu próprio espectro constituem as personalidades mais interessantes de qualquer momento que entram em cena. E os homens? São facilmente ocultados e deixados para escanteio, geralmente servindo apenas de apoio romântico e no que podem fazer de melhor no universo Sherman-Palladino: serem bonitões.
Mas nem eles acabam sendo reduzidos apenas ao seu aspecto galanteador na narrativa, muito menos a uma imagem sexualizada. Mesmo priorizando o desenvolvimento de figuras femininas, e muitas vezes utilizando os personagens masculinos apenas para fins muito específicos, a roteirista ainda consegue dar um devida profundidade a esses componentes. Mais do que pais, namorados ou amigos, eles têm uma importância significativa a favor do desenvolvimento das personagens mulheres, e nunca o contrário. Como exemplo disso, temos Richard, Jess (Milo Ventimiglia) e Luke (Scott Patterson), que, mesmo oscilando em alguns momentos na vida das protagonistas, sempre surgem com participações necessárias para o seu amadurecimento pessoal ou em pontos decisivos de suas trajetórias.
Após seu grande ato televisivo, que se encerrou em uma sexta temporada extremamente anti-climática, Amy Sherman-Palladino deu origem ao seu novo seriado, em 2008, intitulado O Retorno de Jezebel James. Um fracasso completo, que foi cancelado 10 dias após sua estreia e três episódios irem ao ar. Alguns anos depois de continuar na geladeira, em 2012, lançou um novo título: Bunheads. Novamente reciclando aspectos de sua vida pessoal, a trama centrava-se na história de uma ex-bailarina no fim de sua carreira, que acaba se mudando para uma pequena cidade. Apesar de ter conseguido finalizar uma temporada completa, a série não foi renovada.
Quando parecia estar imersa no próprio fracasso, Amy decidiu fugir de sua tendência de focar em tramas da contemporaneidade e retornou para o passado, mais especificamente aos anos 50. É assim que surgiu o que seria a grande consagração de sua carreira, The Marvelous Mrs. Maisel. Fugindo por completo das pequenas cidades fictícias, sua nova obra é ambientada na antiga Nova York. Ao centro dela, está Miriam “Midge” Maisel (Rachel Brosnahan), uma dona de casa que decide ingressar no ramo da comédia stand-up após se divorciar do marido. Quase uma antepassada das Gilmore, Sherman-Palladino ganha de vez a sua licença poética para constituir uma personagem extremamente desbocada e que foge dos costumes da época.
O fascínio da narrativa já é de esperar, pela continuidade dos diálogos extremamente ritmados e com o sarcasmo e ironia balanceados na medida certa. Além de, é claro, o ambiente totalmente familiar, nos levando a rotina dos Weissman, uma família judaica da classe alta. Mas para não se banhar no mesmo mar que lhe rendeu o seu último e único sucesso até então, a roteirista decide traçar críticas mais profundas à estrutura patriarcal da época, e que tem seus significativos respingos até os dias atuais. Retratar uma das primeiras mulheres a ingressar no ramo da Comédia já é simbólico por si só, mas além das injustiças que Midge sofre em sua carreira apenas por ser mulher, há também a repulsa de seus pais diante de seu novo trabalho, os padrões estéticos a que ela estava aprisionada e a conduta materna que paira sobre a própria.
Mais uma vez, Sherman-Palladino consegue subverter por completo os papéis femininos ainda retratados no meio televisivo, mesmo que em tempos mais recentes. Isso tudo sem precisar mergulhar em dramas densos e que busquem escancarar o sofrimento que as mulheres estão condenadas – o qual não precisamos ir muito longe para encontrar no mundo real – apenas para conseguir chocar e, assim, de fato, gerar algum tipo de reflexão no público. Os méritos da produção são incontáveis, e foram o que levaram a produtora a fazer história no principal prêmio da Televisão americana, como a primeira mulher, e também primeira artista no geral, a levar o Emmy na categoria de Roteiro e Direção em série de comédia, em 2018. Um triunfo que apenas reflete sua tamanha importância no meio, ainda mais levando em consideração que seu seriado mais popular nunca havia dado as caras na premiação.
A relevância de Amy Sherman-Palladino para a figura das mulheres na Televisão é tremenda, mas também cabe uma importante reflexão sobre quem são essas protagonistas que ela está retratando na tela, que, no caso, são sempre brancas. Já é nítido que a autora se reflete nas personagens que escreve, basta observar a semelhança com Midge, ambas de família judaica e com um gosto peculiar por chapéus extravagantes. No entanto, dos poucos personagens não-brancos que traz para suas narrativas, nenhum deles recebe uma devida profundidade em suas histórias pessoais. A exemplo temos Lane, que só surge na trama de Gilmore Girls para servir de apoio a amiga Rory, e ganha um desenrolar de sua história pessoal apenas quando é conveniente, mas que perde a mão por completo na reta final da série – justiça por Lane Kim!
O único personagem negro da série também tem a sua participação beirando a superficialidade e as suas tiradas icônicas, diferente de Sookie, que encontra-se no mesmo círculo social de Lorelai. Michel Gerard (Yanic Truesdale) foi, inclusive, alvo de questionamentos diante da representatividade LGBTQIA+, já que o programa nunca trouxe à tona personagens abertamente gays, o que não é um peso carregado apenas pela sua criadora, que queria que a cozinheira do hotel fosse lésbica mas teve a ideia negada pela The WB na época. Essa falta total de abordagem diante da questão queer se tornou piada mais tarde, no revival Gilmore Girls: Um Ano para Recordar, em que Taylor Doose reclama da falta de membros da comunidade para participarem da parada do orgulho do município: “Não há gays o suficiente em Stars Hollow!”.
Vindo para sua produção mais recente, as questões raciais e também queer acabam sendo mais abordadas na figura de Shy Baldwin (LeRoy McClain) ao longo da terceira temporada. Agora, no quarto ano de The Marvelous Mrs. Maisel, a cota de personagens racializados fica nas costas de Mei (Stephanie Hsu), se é que vamos conseguir observar algo mais profundo que os negócios de sua misteriosa família – afinal, eles são sua família? Por outro lado, a representatividade LGBTQIA+ ainda apresenta uma certa relutância em ser de fato declarada em componentes da trama como, por exemplo, a rabugenta Susie (Alex Borstein). Em meio às inúmeras críticas diretas sobre a sexualidade da mesma, a principal fica no fato de que, se todos os personagens heterossexuais têm obrigatoriamente interesses amorosos, por que ela também não pode ter sequer uma menção em torno do assunto?
Críticas e elogios a parte, uma coisa é fato: o caminho iniciado por Amy Sherman-Palladino a mais de 20 anos atrás foi essencial para que, hoje, outras mulheres desbocadas pudessem vir para a superfície com maior facilidade, como é o caso da magnífica (e qualquer outro adjetivo que possa fazer jus a sua grandiosidade) Fleabag, de Phoebe Waller-Bridge. Não foi primordial só apenas na produção da Comédia, mas também pelo feito de poder encorajar uma legião de jovens mulheres a entenderem que, acima de qualquer artifício estético, o sarcasmo pode sim ser sua principal forma de defesa.