Clara Sganzerla
Viajamos, todos os dias, do passado ao futuro. Seja por meio de memórias, lembranças, fatos históricos ou até mesmo dentro de nossos planejamentos; desaparecemos em uma inércia pendular difícil de desvencilhar – nunca vivemos propriamente no presente. No entanto, a atriz brasileira Stella Rabello consegue parar por alguns momentos em algumas dessas duas realidades para ir em uma jornada que ultrapassa as fronteiras de nosso país, esbarrando em uma história sangrenta que, infelizmente, também nos pertence. Em Ana. Sem Título (2020), longa que integrou a Mostra Cinema é Direito do Persona no Sesc Bauru, a cineasta Lúcia Murat nos transporta para o passado latino-americano marcado pela ditadura militar, atrás, apenas, de uma resposta: onde está Ana?
Definida como livre, talentosa, bonita e até mesmo perigosa, o grande mistério acerca da artista brasileira é o que nos envolve na trama. Através de uma metalinguagem muito bem feita, a sensação do telespectador é similar a estar fisicamente presente com a equipe de filmagem, apurando as poucas pistas que Ana nos deixou, na tentativa de montar um quebra-cabeça em que faltam muitas peças. Durante essa viagem, temos o prazer de conhecer a beleza de Cuba, México, Argentina e Chile pelos olhos do diretor de fotografia Léo Bittencourt, e ouvir até mesmo o som dos passarinhos através do trabalho da técnica de som Andressa Clain Neves.
Inspirado na exposição Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, realizada na Pinacoteca de São Paulo, Ana. Sem Título é um mergulho em muitas questões, como o racismo, a opressão e o feminismo como forma revolucionária, mas destaca-se na maneira de retratar as cicatrizes ainda abertas que as ditaduras militares latinas deixaram. O olhar de Lúcia Murat, nesse contexto, é mais do que simbólico, principalmente pela sua trágica experiência como ex-presa política durante o regime militar brasileiro. O longa é, acima de tudo, um lembrete da importância de não nos esquecermos sobre um passado ainda tão recente.
E Ana? Criada para ser uma representação da mulher latino-americana artista das décadas de 1970 e 1980, através do roteiro da escritora Tatiana Salem Levy e da própria Murat, com atuação de Roberta Estrela D’Alva, a beleza da personagem mora exatamente no fato de que ela não é real. A narrativa criada em cima de seu desaparecimento, as cartas trocadas com outras artistas, a busca da equipe em solos estrangeiros para o documentário e todas as conversas sobre resistência, irmandade, liberdade e direitos, deixam a sensação de que Ana, mesmo com provas contrárias, existiu. O longa a eleva como uma entidade, aproveita-se do interesse natural do ser humano ao desconhecido para captar nossa atenção e nos enriquece com trocas reais sobre uma cultura tão complexa, rica e triste.
Através de filmagens em câmeras analógicas, fotografias em preto e branco e relatos em espanhol, conhecemos por meio de Ana a história de milhares de mulheres que gostariam de ter sido ouvidas mas que, infelizmente, já caíram no esquecimento. Ana. Sem Título é um resgate da importância de ouvir as gerações passadas, de valorizar nossa história, de apreciar a Arte nacional e de não nos esquecermos de, às vezes, olhar para trás.