Ainda Temos o Amanhã é tão frustrante quanto verdadeiro

Cena do Filme Ainda Temos o Amanhã. Em preto e branco estão Délia e Marisa, interpretadas por Paolla Cortellesi e Emanuella Fanelli. Duas mulheres italianas de cabelos escuros na altura dos ombros com vestidos na altura de seus joelhos. Ambas estão sentadas em caixotes se olhando enquanto fumam cigarros. O filme se passa em 1946 em um bairro suburbano da Itália. Elas estão na frente de uma parede com uma janela e plantas semelhantes a videiras acima de suas cabeças.
O longa foi pré-selecionado para representar a Itália na disputa do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2024 (Foto: Vision Distribution)

Henrique Marinhos

Enquanto Barbie levava multidões trajadas de rosa aos cinemas em 2023, Ainda Temos o Amanhã (C’è Ancora Domani, no original) alcançou o topo das bilheterias na Itália só com o preto e branco. O debut como diretora de Paola Cortellesi encantou ao construir uma narrativa neorrealista ambientada em 1946, em uma Itália devastada após o fim da Segunda Guerra, na qual todo e qualquer homem é coadjuvante. 

O filme é hipnotizante. Toda sua construção converge e desencadeia sentimentos semelhantes aos de maratonar uma série em um final de semana, depois de deixar episódios semanais acumularem. A protagonista tem uma proximidade excepcional com o público e passa longe de tudo que possamos considerar desinteressante. Queremos continuar acompanhando sua vida, suas relações e todas as suas decisões: até onde Délia iria por si e por quem ama?

Cena do Filme Ainda Temos o Amanhã. Em preto e branco está a cena de um almoço com a perspectiva de baixo. A mesa conta com duas famílias de italianos se conhecendo em que estão 8 pessoas sentadas encarando Délia, dona de casa e anfitriã que pega um prato quebrado do chão com as sobremesas que acabou de derrubar. Ela está agachada enquanto todos os outros apenas a encaram.
Além de dirigir, Paola Cortellesi também protagoniza o longa-metragem e co-escreve o roteiro com Furio Andreotti e Giulia Calenda (Foto: Vision Distribution)

O tom do filme se dá em seus primeiros takes. A rotina de Délia começa com um tapa de seu marido sem qualquer aviso ao acordar, como quem passa a manteiga no pão. Ivano (Valerio Mastandrea) é a figura de um cônjuge autoritário em uma sociedade em reconstrução; a representação do poder patriarcal é guiada por seu pai, que até o adverte para não agredi-la todos os dias… para que não se acostume. Caso tenha companhia ao assistir e ela não esboce qualquer reação de indignação, considere isso, no mínimo, uma red flag.

Em linhas gerais, Cortellesi entrelaça sua obra com o cenário contemporâneo e suas raízes, declarando que, sejam jovens ou idosos, italianos reconhecem no filme um pouco de sua própria família. Não necessariamente remetendo à violência, mas a certas atitudes em relação às mulheres. Representação que, sem dúvidas, atravessa fronteiras e oceanos, explicitando o trajeto para a igualdade que ainda nos resta percorrer.

Cena da produção do filme Ainda Temos o Amanhã. Em preto e branco está a foto da diretora e atriz principal Paola Cortellesi, uma mulher branca, italiana de cabelos ondulados na altura dos ombros. Ela está encarando uma câmera ao ar livre enquanto um cinegrafista a seu lado a manuseia. Em primeiro plano temos uma câmera desfocada à esquerda que ocupa metade da imagem e ao fundo uma paisagem ao ar livre com uma mulher usando máscara.
Cortellesi largou a faculdade de Letras e Filosofia para se dedicar à atuação aos 19 anos (Foto: Vision Distribution)

Polêmica e controversa, a forma com que a diretora conduz os gêneros do longa explicita a dúbia, difícil e complementar tarefa de equilibrar o Drama e a Comédia. As escolhas na representação da violência física e dos momentos de descontração foram os maiores tópicos de discussão em comentários e críticas pelas redes sociais. Enquanto a tensão ao longo do dia cresce a cada minuto no que culmina na exaustiva, frustrante e repulsiva agressão por qualquer justificativa ignóbil de seu marido, o clímax e pesar do ato são substituídos por performances musicais, coreografadas e até amorosas.

Entre a suavização, banalização e normalização da violência ao utilizar tal abordagem, a linha entre fazer uma crítica e reproduzir padrões se perdeu no conceito, mas não na estética. A linearidade e percepção de tempo não deixa claro ao público a seriedade e consequências acumuladas pela protagonista. No entanto (e felizmente), esse aspecto é complementado pela frustração e indignação de sua filha Marcella, maravilhosamente interpretada por Romana Maggiora Vergano.

Cena do filme Ainda Temos o Amanhã. Em preto e branco está uma família de seis pessoas posicionadas para foto. À direita está Délia, uma mulher branca, italiana de meia idade com cabelos ondulados escuros na altura do ombro, vestindo um avental e camiseta. Ao seu lado esquerdo está Marcella, sua filha branca de cabelos longos pretos e camiseta polo. Abaixo está o Avô Ottorino que usa um terno preto e está sentado em uma poltrona. Ao seu lado estão dois garotos com camisetas e suspensórios abraçados com seu pai Ivano, um homem com um terno claro, bigode expressivo e camiseta social por baixo. Todos encaram sua frente.
Giorgio Colangeli, que interpreta o patriarca Ottorino, também fez parte do filme Imaculada, terror promissor lançado em Março de 2024 (Foto: Vision Distribution)

Além de ser dona de casa, mãe de três filhos e cuidadora de seu sogro senil e repugnante, Délia ainda remenda roupas, conserta guarda-chuvas, lava lençóis e aplica injeções para conseguir alguns trocados que deve ao seu marido. Roubando um ‘bocado’ – de seu próprio dinheiro – ao fim do dia, seu principal objetivo é dar para Marcella um futuro melhor que o seu. E é entre todos esses ‘bicos’ que nos perdemos completamente. Reconhecer os pequenos prazeres da vida nunca foi tão real quanto aqui.

Na venda, durante as compras, conhecemos Marisa, a maior confidente e cúmplice da protagonista, premiada e interpretada brilhantemente por Emanuella Fanelli, que se refere a Ivano como carcereiro. Conhecemos suas colegas que lavam roupa e, provavelmente, inventaram o que conhecemos como fofoca; conhecemos também seu flerte do passado e torcemos para que seja seu futuro; além de um soldado americano à paisana que, por um simples gesto, está em dívida com ela. Podemos até contemplar os olhares complacentes de outras mulheres ao longo do dia, mas tudo isso se desmonta ao chegar em casa.

Cena do filme Ainda Temos o Amanhã. Em preto e branco está Délia, interpretada pela atriz Paola Cortellesi. Uma mulher branca italiana com cabelos escuros e ondulados na altura dos ombros. Ela está com um vestido escuro e blusa clara por cima. Está andando com uma sacola de feira enquanto passa na frente de um grupo de pessoas em uma calçada que está subindo na traseira de um caminhão.
Para Itália, Cortellesi dá vida a personagens de O Rei Leão, Carros 2 e O Pequeno Príncipe (Foto: Vision Distribution)

Toda essa atmosfera entre esperança e desespero é acompanhada de planos sequência, close-ups e a maestria na utilização da escala de cinzas por Davide Leone. Para além da técnica, ele também mostrou como a fotografia e a montagem, feitas por Valentina Mariani, são artes que quase se personificam. Por outro lado, a trilha sonora, assinada por Filippo Porcari e Federica Ripani, acompanha bem o dia-a-dia, porém peca ao exceder-se com trechos longos e fora do tom de 1946. Outro ponto que foi fundamental e, junto à fotografia, nos teleportou para a Itália, foi a decoração de set por Fiorella Cicolini: sem ‘firulas’, simplista e detalhada, não deixa brechas para o questionamento da beleza das comunidades italianas em todas as suas nuances.

Não surpreendente, Ainda Temos o Amanhã não conquistou somente o público com a maior bilheteria italiana de 2023, mas também a Academia do Cinema Italiano na premiação cinematográfica mais importante do país, o Prêmio David di Donatello. Com 19 nomeações, o filme arrecadou seis estatuetas, entre elas: a de Melhor Primeira Obra e Melhor Atriz Principal, para Paola Cortellesi; Melhor Atriz Secundária, para Emanuela Fanelli; Melhor Roteiro Original; Prêmio do Público; Prêmio da Juventude.

Cena do filme Ainda Temos o Amanhã. Em preto e branco está Marcella, interpretada pela atriz Romana Vergano. Uma mulher italiana, branca e jovem com cabelos longos, escuros e ondulados que sorri para a câmera. Ela está rodeada de mulheres em uma multidão e veste uma camiseta clara quadriculada polo.
Romana Vergano, que interpreta Marcella, conseguiu um papel na promissora série milionária do Prime Video, Those About To Die (Foto: Vision Distribution)

Sem muitos spoilers, a trama mais significativa do filme e, talvez, para Délia, seja assegurar que Marcella, sua primogênita que foi proibida de estudar pelo pai, possa ter um futuro diferente do seu, reconhecendo padrões que a filha ainda não tem malícia para entender. Os planos de fuga, esconderijos e cartas secretas são endereçados não a si mesma, e sim ao amanhã, e é por esse motivo que nos contorcemos. Por mais que ela seja cativante, a história de uma mulher de classe baixa e resiliente ainda é limitada pelo contexto histórico e condições materiais e ideológicas que permeiam a trama.

O longa ressalta a importância da retratação de cenários cotidianos de pessoas comuns na formação da consciência histórica, além de ser uma crítica às estruturas de poder. Entre temas como o feminismo, a autonomia financeira, educação e outros direitos, o filme se torna um espelho das lutas passadas e presentes das mulheres, refletindo as dificuldades enfrentadas em um mundo que ainda carrega o peso do patriarcado e a persistência de padrões de comportamento, que perpetuam a opressão. A busca por um futuro melhor para sua filha é a esperança que intitula o longa. Afinal, ainda temos o amanhã.

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