Enzo Caramori
‘‘O amor da juventude, a juventude do amor
desaparecerá e passará quanto antes.’’
– John Hay
Período em que a suspensão da realidade diária cede lugar à educação sentimental, ao titubear emocional, ao erro e à tentativa: o verão é uma quietude na qual a procrastinação dá espaço a descobertas sensíveis. É uma das temporadas dos filmes de Éric Rohmer, cujos propósitos de suas relações ficcionais são, de qualquer maneira, a afetação, seja por leituras tediosas de Balzac, gestos sutis de sedução e o mormaço claro do sol francês. Mesmo que dispondo de um olhar que se dedica às delicadezas da estação, o drama Afire (2023), presente na Perspectiva Internacional da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, não almeja o lugar da beleza e da delicadeza rohmeriana – na qual se inspira –, mas enfoca justamente nas feridas subjetivas de suas personagens, colhendo, do tédio, o sentimento melancólico de alheamento.
O segundo capítulo da Trilogia Elemental do diretor Christian Petzold constrói-se em uma fábula febril, cuja paisagem bucólica e ao mesmo tempo praiana do Mar Báltico alemão é o fundo da construção de atritos e emoções sutis entre um trio central de personagens. A tentativa de isolamento dos amigos Leon (Thomas Schubert) e Félix (Langston Uibel), um escritor e outro fotógrafo, para a realização de seus respectivos projetos, poderia, em um arco narrativo do gênero de filmes de verão, ser iluminada com a presença inesperada e misteriosa de Nadja, interpretada por Paula Beer, presente no trabalho anterior de Petzold, Undine (2020). Contudo, tanto pela ameaça silenciosa e iminente de queimadas naturais na região seca onde refugiam-se, na casa do fotógrafo, quanto pela centralização da perspectiva pessoal do escritor, um personagem em crise com sua escrita e seu ego conflitante, Afire torna o que poderia ser um fator idílico em algo delicado, incômodo e taciturno.
Ao colocar sobre primeiro plano o complexo narcisismo e frustração do protagonista Leon perante si e seus amigos, a direção de Petzold não faz estremecer somente o espectador frente a diálogos minuciosamente construídos – sarcásticos e com um gosto quase tchekhoviano – que enveredam o espectador nos flertes, farpas e ciúmes do trio. Mas também a própria expressão dos personagens quando pouco dizem e que faz prevalecer o que deixam de falar uns aos outros: algo sempre visível em suas fisicalidades, contrastante, em momentos de tensão, com a leveza do ambiente.
A vivência na casa os situa em uma intimidade não construída pela afinidade ou pelas semelhanças, mas justamente por um contato estabelecido por devida distância. Em uma dança de olhares, os personagens observam-se mutua e silenciosamente pela janela de seus quartos ou se escutam entre as paredes finas dos cômodos, que deixam escapar seus gemidos à noite. Esse caráter voyeurístico parece corroer Léon interiormente, que vê o verão escapar entre seus dedos, já que o perde entre extensos cochilos, maços de cigarros e o denso desespero de, acima de tudo, não se fazer nada.
Ainda que Rotter Himel – título original do filme, que se traduz ‘‘paraíso vermelho’’ –, pareça transportar as tensões sociais e emoções reprimidas na urdidura de silêncios de Deserto Vermelho, dirigido por Michelangelo Antonioni, homenageado pela 47ª Mostra, o longa e o Cinema de Petzold é marcado por um retrato sutil das transformações e dos sujeitos sociais da sociedade alemã. Talvez o maior traço disso seja a construção do ritmo de ações do protagonista se situar entre o alarmante sentimento de ser produtivo contra o abraçar do devaneio, que faz de sua vivência na casa mais uma performance, na qual, frente aos outros, finge estar escrevendo, do que um abraço a um aspecto inventivo do ócio.
A praia é a paisagem possível – a uma sociedade assolada pelo pós-guerra, pela cisão política e pela lógica de honra do trabalho – de se ter um corpo, fazer sexo, se recriar e inventar fora da norma de produção. Mas, como abordado de diferentes maneiras por seus predecessores Harun Farocki e Rainer Werner Fassbinder, o trabalho é o concessor de uma identidade capaz de evanescer com o estalar dos dedos, o que faz Schubert não somente encenar o protagonista, mas, também, performar o trabalho que atende a Leon um único objetivo: sua vergonha e a representação de si frente a um mundo onde outros não necessariamente trabalham, mas ocupam seus espíritos consigo mesmos.
Afire toma uma leitura mais singela e moderna de melodramas e novelas para referir-se, a partir do pessoal, a traumas e crises sociais, e mostrar, mesmo com determinada distância, que talvez se precise das ondas – ou do fogo –, para se desfazer de si. Quase que como um conto moral de Petzold, o desprendimento das resistências individuais parece ser o caminho ideal para o aflorar criativo de Leon, além de um deslumbramento com a paisagem que, em filmes como A Ilha de Bergman (2021), de Mia Hansen Løve, e Acima das Nuvens (2014), de Olivier Assayas, toma a beleza do espaço e a conexão com os elementos terrenos – a sensualidade, as sensações e os sentidos – como o desbloqueio de suas dificuldades.
No filme, a Literatura não deixa de cumprir sua função estética como um eixo de referência entre o diretor e sua criação, mas também narrativa. Personagens escritores podem, curiosamente, servir de metáforas ou alegorias a seus autores, mas nesse contexto, o ofício parece capturar o sentimento de recusa ao outro. Para além de um arcabouço do qual o protagonista justifica seus escapes às atividades cotidianas e conjuntas dos dias ensolarados, a desculpa da escrita é a concha para qual se volta quando se encontra em desalinho e alienado do corriqueiro, lidando com a introspecção e a insegurança de seu texto. Aqui, a escrita é uma covardia e uma forma de comunicação na qual se materializa essa constante conexão e desconexão do mundo que o cerca, tanto por grosserias materializadas em maus-entendidos que nebulam jantares ainda ensolarados quanto pelo embaraço íntimo de uma paixão incerta.
Em Afire, a apatia do personagem predomina e, diferentemente dessa consonância com a natureza e o ambiente que acarreta ao pico criativo, é a partir do fogo e das cinzas – que chegam a parecer dentes-de-leão ao céu – que o escritor encontra-se em seu texto. Um fogo que não somente é um componente de uma fábula contemporânea que coloca uma catástrofe natural, que enfurece ao longo que o filme passa, à espreita e ao fundo dos planos e diálogos, mas sim um presságio que espelha a experiência psicológica e o colapso de seus personagens.
Se de alguma forma Petzold persiste, como em Undine, a reconstruir mitos, o faz dando a um imaginário específico de filmes alemães, um Cinema veranil, cuja claridade adentra pela queima lenta de tensões e pela repetição quase métrica das emoções de seus personagens. Mesmo não atravessados pelo estremecimento emocional do protagonista, são envolvidos por uma inércia que faz as mudanças serem sutis e quase imperceptíveis. Não há rupturas, mas sim uma profundidade que vai se acessando com as ações e interações com os motivos centrais da obra que, centrado no mundo egoico de Leon, se fazem ainda mais ocultos e imperceptíveis sob sua cegueira às relações sociais e emocionais que o cercam.
O que é verossímil e se faz real é a capacidade do amor e da paixão, sentimentos abissais que torcem seus personagens para dentro e fora de si. O tremor desse indivíduo enveredado em um sua paixão e sua vergonha é um cenário que não precisa ser representados em sua literalidade, pois já é ilustrado pelo olhar abissal frente a uma catástrofe natural e sensível, desesperados para agarrarem-se ao que está a iminência de se perder, frente ao fogo.
Afire se estabelece mais no sentimento de não representar em sua totalidade, dada suas lentes individualistas que prendem Leon a si mesmo e que, ainda que suas patologias criativas sejam superadas, remanesce como sendo o protagonista de uma crônica sobre perda. O sentimento final de culpa não apenas instaura um gosto estranho de melancolia, como de algo que não pode ser dito e que se encerra em sua perspectiva, mas também da realidade da representação. Trêmulo, em uma chama baixa próxima a se apagar, o tempo de descobertas se afoga no sentimento da inércia de alguém que fica ao fundo e observa o verão se desenrolar, enquanto restam só escritos do que poderia, em algum momento, ter sido.