Vitória Gomez
O Cinema político sempre encontrou solo fértil no Brasil. Por aqui, não falta o que retratar: ditaduras, questões trabalhistas, de distribuição de renda, alimentos e moradia, golpes de Estado e por aí vai. Até um dos mais básicos processos democráticos, as eleições e os seus ecos na sociedade brasileira, têm sido tema de poderosas metáforas na produção nacional, com a crescente ameaça à democracia sob a premissa de defesa dos bons costumes e do patriotismo. Voltando os olhos para o outro lado do oceano Atlântico, Sérgio Tréfaut, cineasta brasileiro que viveu em Portugal e na França, joga luz sobre o fenômeno do recrutamento de jovens sobretudo franceses para se juntarem às linhas de luta do Estado Islâmico. Em A Noiva, que estreou no país na seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o conflito é pincelado através da vivência de Bárbara, viúva de um jihadista.
Interpretada profundamente por Joana Bernardo, a noiva que dá nome e estampa a capa do filme não está noiva. Na verdade, em poucos minutos, seu marido, um homem francês que lutava no grupo Daesh, é executado pelo exército do Iraque junto a outros membros, de diferentes nacionalidades. A Noiva não é didático, mas aqui cabe a contextualização: frente à instabilidade política no Iraque, o Estado Islâmico (EI) foi proclamado em 2003, mas só em 2014 ganhou esse nome. Sob o pretexto de defender o Islamismo, o grupo armado, que não representa a totalidade da religião, se reorganizou e estendeu sua atuação ao Oriente Médio e a alguns países da América e Europa com atos terroristas e ações de recrutamento. O termo jihad, inclusive, significa luta em seu sentido mais amplo, mas é interpretado pelo Grupo como a luta armada, e os guerrilheiros ficaram internacionalmente conhecidos como Jihadistas. Recentemente, o EI passou por baixas. É no enfraquecimento da organização que os homens foram capturados e as viúvas dos Jihadistas se viram em julgamento por sua afiliação.
Na produção de Portugal, a jovem lusitana Bárbara se casou com um francês recrutado para o Daesh e, com a captura e execução do marido, se vê trancafiada em um campo de prisioneiros. Junto a outras viúvas do Jihad, a protagonista aguarda o julgamento na corte iraquiana. Enquanto os homens sequer passam por uma audiência nas mãos do exército do país, as mulheres e crianças são poupadas, podendo ser condenadas à mesma sentença se não se declararem arrependidas pelos feitos. Sob um olhar quase jornalístico, A Noiva acompanha a trajetória da moça com seus dois filhos pequenos e grávida do terceiro, até ser julgada, passando pelo seu cotidiano no campo e pelos deslocamentos forçados.
A obra poderia facilmente se passar por um documentário. A câmera nunca estática de João Ribeiro, responsável por uma fotografia de poucos contrastes, mesmo em meio ao deserto, filma os dias da viúva quase como um observador. Com exceção de poucos momentos em que os planos intencionalmente destacam as movimentações e expressões da protagonista, os longos takes, ainda que por ora cansativos, sustentam a noção de realidade ali proposta. Ao longo de quase uma hora e meia, apenas acompanhamos Bárbara e suas companheiras de aprisionamento comendo, se banhando, rezando e sendo transportadas de um lugar para outro durante a noite sem sequer terem sido avisadas.
Durante a sessão da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na qual o Persona esteve presente, Sérgio Tréfaut participou de uma breve apresentação de A Noiva e respondeu a um par de perguntas dos telespectadores após a exibição. Ele afirmou não gostar de filmes que se explicam e, por isso, a obra opta pelo caráter de não se parecer com uma ficção, apesar de ser. Sérgio também contou que o aspecto jovial, quase infantil, da protagonista foi escolhido propositalmente entre mais de 100 atrizes que participaram da audição: segundo ele, a produção, a mais recente de sua extensa carreira, pretende mostrar a dualidades dessas garotas, que saem de suas cidades e países para se juntarem ao Grupo.
O diretor ainda destacou que A Noiva surgiu de sua curiosidade acerca do fenômeno do recrutamento, em uma época em que muitos jovens europeus estavam se convertendo ao Islamismo, e de sua indignação com a cobertura jornalística ocidental, que agia mais como um tribunal do que como veículos noticiosos. Tréfaut viveu em Portugal e na França e se destacou na produção de documentários, formato pelo qual pretendia retratar tal movimento em direção aos grupos. Em visita ao Iraque pela primeira vez em 2012, a intenção era filmar a realidade da região, “procurando desmontar a falsidade da teoria de Estado norte-americana, segundo a qual uma imprensa independente e eleições livres transformariam o Iraque num país democrático e pacífico”. O recuo do exército norte-americano e consequentemente a ocupação da cidade de Mossul impossibilitaram os registros.
Na sessão da Mostra Internacional de São Paulo, o diretor ainda contou que o longa foi gravado tranquilamente na região do Curdistão, mas que, em momentos que cruzavam a fronteira de volta ao Iraque, a equipe teve de ser escoltada, sendo possível sentir a tensão no local. Apesar de abordar o tema diretamente no debate com os espectadores presentes no Reserva Cultural, A Noiva é mais sorrateiro e apenas pincela o que Sérgio falou tão abertamente na sala de cinema. O panorama geral do conflito que assola o Oriente Médio há mais de uma década é personificado por Bárbara, ao passo que acompanhamos as pequenas ações do seu dia a dia até o julgamento, o que provoca a empatia do telespectador.
Justamente pela complexidade do tema, porém, por vezes a obra deixa a sensação de estar recortando demais um panorama geral infinitamente mais amplo, pouco explorado aqui. Por outro lado, ao direcionar a câmera à protagonista, Tréfaut, que também foi responsável pelo roteiro de A Noiva, aborda um conceito tão familiar a ele mesmo: o da transnacionalidade. Bárbara fala português, francês e um pouco de árabe, e, a caminho do julgamento na corte iraquiana por suas ações em nome de uma nova pátria, a qual se converteu, ela também se vê confrontada com sua nacionalidade, sobretudo com a visita do pai português.
Nisso, o longa-metragem triunfa em representar as dualidades que Sérgio propôs: longe de colocar na protagonista o rótulo de inocente ou culpada pelo seu envolvimento com o grupo, o cineasta a posiciona como um camaleão. Ora Bárbara apela à Embaixada francesa por seus direitos; ora reza junto às mulheres muçulmanas e afirma acreditar que o pai das crianças, guerrilheiro do Daesh, foi um herói; ora indica querer voltar para casa junto ao próprio pai. Acompanhando a personagem principal, o conflito deixa de ser dividido em lados inimigos. Aqui, a superficialidade na abordagem de um contexto geral dá lugar a uma vivência específica: A Noiva não almejar ir além de sua protagonista. Ao final, seja na ficção ou no documentário, o lugar do Cinema sempre foi representar a realidade.