Gabriel Oliveira F. Arruda
Admiro muito os artistas que se propõem a realizar obras autobiográficas, sejam elas na literatura ou no cinema, já que a minha péssima memória não me permitiria escrever algo do tipo. No entanto, me lembro distintamente da primeira vez que ouvi Born to Run, do Bruce Springsteen. Eu devia ter 13 ou 14 anos, e lia Battle Royale, do japonês Koushun Takami, uma obra que faz inúmeras referências a lendária música de Springsteen. Me lembro do impacto que ouvir aquela canção, naquela idade, me causou. A Música da Minha Vida (Blinded by the Light) fala exatamente sobre esse sentimento.
Baseado no livro autobiográfico do jornalista Sarfraz Manzoor, Greetings from Bury Park, é dirigido por Gurinder Chadha (Driblando o Destino), o filme conta a história de Javed Khan (Viveik Kalra). Um jovem paquistanês vivendo nos subúrbios de Luton, Inglaterra, durante os turbulentos anos do governo de Margaret Thatcher, e como a descoberta da música de Springsteen mudou a sua vida e sua percepção do mundo e de sua família.
É impossível ouvir essa sinopse sem se lembrar de Yesterday, longa que estreou há apenas algumas semanas e que imaginou um mundo em que os Beatles nunca existiram. Mas, A Música da Minha Vida se difere do filme de Danny Boyle justamente por ser uma narrativa mais centrada e simplista, que tem como pano de fundo não a ausência dos artistas sendo referenciados, mas sim a presença que eles exercem na vida das personagens.
Por mais que as cenas sejam regadas à uma seleção dos maiores hits do cantor e que sua presença na vida de Javed seja o grande motivador das mudanças pelas quais ele passa, esse não é um filme sobre o artista em questão. Não é nem mesmo um filme sobre ser um fã de Springsteen (apesar de tanto Gurinder quanto Sarfraz serem, admitidamente). É sobre a sensação que descobrimos ao encontrar uma música, um longa ou um livro que realmente nos toque em nosso íntimo. Uma sensação tão específica e ao mesmo tempo universal que é difícil dar apenas um nome para ela: a sensação de ser compreendido.
“Você acha que esse homem canta para pessoas como nós?”
“Mas ele fala para mim.”
É um sentimento infantil: o de que a vida finalmente faz sentido após você ouvir uma música. Mas a direção de Chadha não esquece disso e, ao invés de endeusar a mensagem de Springsteen, ela escolhe colocar Javed como personagem central antes e depois da música do Boss, fazendo com que sua jornada vá muito além do artista norte-americano.
Em um momento do filme, Javed aponta para seu amigo Matt (Dean-Charles Chapman) que a música Born in the USA na verdade não é sobre patriotismo cego, e sim sobre os veteranos da Guerra do Vietnã que ao voltarem para casa, se sentiram abandonados por seu próprio país. É de maneiras assim que a diretora abre nossos olhos para as diferentes interpretações que a música de Springsteen pode provocar. Até mesmo hoje políticos norte-americanos usam essa música em comícios, ignorando o significado que o próprio artista atribuiu à arte.
No que se trata do drama familiar, não é um filme original ou que assume muitos riscos, mas ele é distinto na sua execução das batidas narrativas que acontecem nesse tipo de relação. Como bem coloca a personagem de Hayley Atwell, Ms. Clay, professora de Javed que o incentiva a escrever mais e a fazer com que sua voz seja ouvida: “Foi pessoal e apaixonado. Eu podia te ouvir gritando da página.” Então, se há algo batendo no seu coração além de gelo e cinismo, não se preocupe, a falta de originalidade não vai te incomodar, porque esse não é o foco aqui.
Viveik Kalra entrega uma performance emocionante, construindo a personalidade e as mudanças pelas quais Javed passa com confiança. Ver as evoluções e regressões da personagem ao longo da trama, e as maneiras com que elas são expressas (seu figurino, sua maquiagem, seu penteado), além da atuação de Kalra, chega a ser hipnotizante, te seduzindo até que você esteja torcendo para que tudo dê certo em sua vida.
No elenco coadjuvante, temos de dar destaque para a família de Javed. Apesar de parecer um pouco caricata às vezes, apelando para construções de suburbanas comuns na cultura asiática, o longa estabelece muito bem as dinâmicas do ambiente. Falta, porém, a melhor exploração da relação de Javed com sua mãe (Meera Ganatra). A relação e os conflitos dele com seu pai (Kulvinder Ghir) são o centro emocional do filme e ambos atores brilham em seus respectivos papéis, vendendo a paternidade tóxica e a juventude rebelde com destreza.
Além do núcleo familiar, temos Roops (Aaron Phagura), o amigo de Javed que o introduz a Springsteen (“Bruce é a linha direta pra toda a verdade nesse mundo de merda”) e Eliza (Nell Williams), a garota por quem Javed é nem-tão-secretamente-assim apaixonado (“Não foi ótimo? Eu adoro um bom show antifascista”). Os três protagonizam uma das sequências musicais mais alegres e energéticas dos últimos anos, passeando por Luton ao som da consagrada Born to Run. É um desafio assistir a sequência sem sorrir. Além deles, a já mencionada Hayley Atwell é a presença que todos gostaríamos de ter em nossos anos nos colégios: uma professora que acredita no potencial de seus alunos mas nunca os ilude, sem se importar em ser rude ou não.
Em entrevistas, Gurinder Chadha já havia comentado o quanto o atual clima político na Inglaterra havia inspirado o longa. Lidando de maneira hábil com questões sociais como o fascismo perpetuado pelo National Front nos anos 80 e o racismo encontrado por imigrantes nos subúrbios das grandes cidades, e como ele impactou a visão que eles têm de si mesmos. Ela, assim como seu protagonista, encontra na música de Springsteen mais do que apenas um refúgio, mas uma maneira de encarar e de fazer sentido do mundo, de encontrar um jeito de melhorá-lo.
“Bruce canta sobre trabalhar duro e se agarrar aos seus sonhos, e a não deixar que a crueldade do mundo impeça o que há de melhor em você.”
Anteriormente, já foi dito que esse não era um filme sobre Springsteen. Todavia, pela quantidade de vezes que seu nome é mencionado, é aparente o quanto ele é peça fundamental dessa história e o quanto sua presença é sentida ao longo da trama. A Música da Minha Vida consegue fazer duas coisas importantes: extrair o máximo possível de significado das músicas através da direção e da performance dos atores, ao ponto que é plausível nos perguntarmos se as músicas não foram escritas anos atrás especialmente para esses momentos. E, ao mesmo tempo, aderir o máximo de intensidade e emoção às cenas em que as músicas tocam.
Há mais uma coisa que me recordo da primeira vez que eu ouvi Springsteen: depois de ter escutado algumas músicas dele no YouTube, me deparei com uma gravação de sua performance no Rock in Rio 2013, na qual ele canta Sociedade Alternativa, do Raul Seixas e lembro especificamente de ter ficado completamente perplexo. Perplexo que um artista gringo, com uma lenda própria, iria para outro país aprender a letra de uma música de outra lenda em uma língua que ele não conhece e cantá-la em um dos maiores festivais de música do mundo. Mostrou que a música era capaz de romper barreiras não só físicas como também culturais. E nunca estive tão perto dessa sensação do que enquanto assistia A Música da Minha Vida.
“Os cães da Main Street uivam, porque entendem
Se eu pudesse segurar um momento em minha mão
Senhor, eu não sou um menino, sou um homem
E eu acredito na terra prometida”
– Bruce Springsteen, The Promised Land