Guilherme Veiga
Se tem uma coisa que George R.R. Martin, DB Weiss, David Benioff e a HBO souberam criar, além de um mundo fantástico, foi uma tradição. Nos anos finais de Game of Thrones, uma religião praticamente nasceu em torno da série, na qual dominicalmente entoávamos o rito de sentar à frente das telas para passar a próxima hora imersos naquele mundo. Não é à toa que GoT se tornou um produto de seu tempo que influenciou e ainda influencia a cultura pop.
Graças ao seu final extremamente duvidável e a procrastinação do autor para finalizar os livros, é natural que a série deixasse alguns órfãos para além Westeros. O que não se esperava era que o próprio HBO Max fosse um desses abandonados. A emissora, dona de obras primas como The Sopranos e The Wire, não viu nenhuma produção ascender como a história dos 7 reinos, logo, estar vivendo seu ápice aos poucos coloca na produtora o medo de “como superar isso?”, o que ocasionou uma sombra gigantesca em suas produções. Para espantar essa dúvida, eclodiu do ovo de dragão a primeira série de spin-offs ambientados em Westeros: contando a história dos adorados Targaryen no início do que seria sua derrocada no trono, A Casa do Dragão alçou seu primeiro voo em 2022.
Tendo como base o livro Fogo & Sangue e capitaneada por Ryan J. Cordal e Miguel Sapochnik como showrunners – esse último, dono dos melhores episódios de GoT, como a Batalha dos Bastardos -, a trama segue outro jogo dos tronos, 200 anos antes de Daenerys, Jon Snow e companhia. Em uma Porto Real tomada pelos cabelos platinados na alta nobreza, a história tem como estopim a sucessão do trono após a morte de Viserys Targaryen (Paddy Considine) e vem com a difícil missão de manter a régua de sua antecessora. Porém, o material base ainda era fresco no imaginário popular: House of the Dragon (título original da produção) tinha uma fórmula pronta a seguir e, assim, se calcou nos melhores aspectos de Game of Thrones.
Se engana quem pensa que a série é um copia e cola de GoT ambientado em outra época. Essa era, talvez, uma das maiores preocupações da audiência, apesar da confiança que a HBO construiu em suas obras a partir dos anos. A história do reino dos dragões trouxe muita identidade para si e, já em seu primeiro ano, cravou seu lugar na Televisão, deixando para as próximas temporadas a expectativa de um novo fenômeno. A volta de R.R Martin como produtor executivo e roteirista – que tinha abandonado a jornada de Daenerys nas últimas três temporadas – é, sem dúvidas, o grande motivo disso. Ter a mente criadora, com conhecimento da narrativa na ponta dos dedos para explorar outro ponto de vista dos eventos, faz a série se destacar em seu próprio – e gigantesco – universo.
Diferentemente dos livros, que praticamente passeiam entre as rusgas diplomáticas quase como um observador externo, A Casa do Dragão analisa os conflitos reais a partir da própria nobreza. O jogo político entra mais em foco e, por conta de um elenco mais enxuto, consegue desenvolver e apresentar esse entrave de forma mais palatável e menos complexa (apesar dos vários nomes iguais dos Targaryen), porém igualmente truncada.
Tal artifício é mérito total da escrita, tão afiada quanto os dentes dos vários dragões. O roteiro de Martin, Sara Hess, Ryan Condal e Charmaine DeGraté teve suas deficiências, a principal ficando por conta de um velho fantasma dos anos finais de Game of Thrones: a correria com os episódios. O próprio Martin afirmou que o ideal seriam 13 capítulos, ao invés dos 10 que foram ao ar, e, cá entre nós, ninguém reclamaria de mais três semanas ouvindo a clássica abertura, graças à volta de Ramin Djawadi na trilha sonora. Isso, ainda mais em um temporada que depende de saltos temporais, incomoda levemente, pois mostra que a narrativa tinha muito mais para explorar. Ainda assim, o texto é o grande responsável por driblar os furos e criar um ritmo próprio e extremamente envolvente.
A série não dá respiros e vai direto ao ponto. Se Game of Thrones separava seus episódios políticos do tiro, porrada e bomba – um grande exemplo é o segundo capítulo da oitava temporada, que funciona como o momento de calmaria antes d’A Longa Noite -, House of the Dragon vai por um caminho diferente. A produção sabe mesclar os dois aspectos de forma única e amarrá-los através de traços de narrativa épica para o texto. Apesar de parte da história ser escanteada, a obra consegue criar de forma bem convincente seus personagens; de primeira, é possível entender o papel daquelas pessoas no anúncio de guerra, para futuramente desconstruir essa imagem estabelecida.
Com o design de produção, comandado por Jim Clay, sendo infinitamente melhor em questão de ambientação, House of the Dragon se parece com a prima rica de Game of Thrones. Essa diferença de forma alguma prejudica a obra anterior: pelo contrário, coloca as duas épocas em pontos distintos que, de certa forma, atraem uma coesão para o que foi o período entre guerras. O spin-off entrega um visual de encher os olhos e que condiz com toda a pompa e circunstância da qual se comprometeu.
Os efeitos especiais também são outro espetáculo à parte. Depois da HBO encher os bolsos, a emissora reverteu parte da grana em A Casa do Dragão. Ainda é possível notar alguns deslizes, principalmente nas cenas que envolvem os personagens humanos com os dragões, mas tudo é compreensível dada a grandiosidade que a série se propôs logo em sua estreia. Abandonando aos poucos o fundo verde já saturado pela indústria, a obra investiu nos painéis de LED para compor algumas de suas paisagens e, mesmo quando teve que usar o chroma key – até porque agora precisava imprimir 10 dragões em tela -, fez isso com um primor que mostra que cada vez mais a TV diminui o abismo com o Cinema, as vezes até o ultrapassando, como no caso da produção.
Sem dúvidas, o grande responsável pela série atingir o patamar que atingiu foi seu elenco, em convergência com o texto que soube exaltar seus personagens. A leva de 10 episódios pode tranquilamente servir como indicação ao Emmy para cerca de 90% do elenco principal. Diferente do que fez com suas outras obras, mais uma vez o HBO Max aposta em nomes menos conhecidos do público para o desafio de viver as personas (com exceção de Matt Smith, já conhecido por ser um dos Doctors em Doctor Who).
Tanto os personagens que perduraram pela temporada quanto os que foram trocados na mudança de fase – algo inédito em grandes produções como HotD – entregam atuações de suas vidas. Smith, por exemplo, sabe construir um Daemon cheio de malícia e imprevisibilidade, no qual só sua presença já impõe respeito. A australiana Milly Alcock e Emily Carey (Mulher Maravilha) nos papéis das jovens Rhaenyra Targaryen e Alicent Hightower, respectivamente, imprimem magistralmente essas figuras para suas próximas intérpretes, tanto é que parte das reclamações sobre a temporada ser apressada é porque seria maravilhoso ter mais tempo de tela das duas. Também não se pode esquecer das grandiosas performances de Rhys Ifans (Homem Aranha: Sem Volta para Casa) como Otto Hightower e Eve Best (O Discurso do Rei) como Rhaenys Targaryen, A Rainha Que Nunca Foi.
Mas os verdadeiros destaques ficam para o trio principal que movimenta a história. Olivia Cooke (O Som do Silêncio) entrega uma Alicent adulta sabendo transitar entre sua sede de poder e a subordinação ao pai. Emma D’arcy é deslumbrante e extremamente elegante, assim como um copo de negroni, e impõe uma força surreal para uma Rhaenyra buscando seu lugar, seja ele no trono ou como mulher em uma sociedade patriarcal. Porém, quem destoa completamente é Paddy Considine na pele putrefata de Viserys Targaryen. É difícil simpatizar com o rei de Westeros, mas o ator soube desenvolver as camadas de seu personagem de forma tão verossímil e complexa que é impossível não compadecer com suas dores naquele contexto, além de entregar algumas das cenas mais épicas da temporada.
Ficou claro que House of the Dragon ainda tem muito o que percorrer para se desvencilhar de Game of Thrones, mas o primeiro ano mostrou que essa tarefa não será tão difícil quanto imaginamos. Conhecendo os erros e acertos de uma produção fantástica, a série sabe onde investir e o que arrumar e ainda assim consegue desenvolver uma identidade para chamar de sua. Um dos pontos mais positivos é como trabalhou a força feminina. Enquanto em GoT, com exceção de Daenerys, foram anos para desenvolver algumas personagens, como Sansa, Arya e Cersei, aqui muitas mulheres já estrearam com uma força monumental.
A dança dos dragões começou a ser montada e esse xadrez se mostra tão intrigante quanto o que o inverno anunciava. Apesar dos deslizes, comuns em primeiras temporadas, o saldo de A Casa do Dragão é extremamente convincente e devolveu aos fãs traumatizados a esperança de uma ótima produção se desenvolvendo. A noite pode até ser escura e cheia de horrores em seu futuro, que só vem em 2024, mas o fogo dos dragões promete iluminar esse caminho.