40 anos de Ramones: Reacionarismo e revolução

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Da esquerda para a direita: Johnny, Tommy, Joey e Dee Dee. Guarde esses nomes!

Gabriel Leite Ferreira

1976. Seis anos sem os Beatles. O rock’n’roll havia alçado voos mais altos na era da psicodelia; o próximo passo foi a sofisticação do rock progressivo de Pink Floyd e Yes, que já soava redundante. Mesmo os expoentes com proposta mais direta apresentavam sinais de desgaste: o reinado do Led Zeppelin estava nos momentos derradeiros e a fase clássica do Black Sabbath findava com a saída do vocalista Ozzy Osbourne. Os rockstars, figuras com uma aura própria, entravam em decadência pelos excessos tanto musicais quanto pessoais. O Verão do Amor enfim tornara-se inverno. Ninguém esperava que a resposta a essa crise de identidade viesse na forma de quatro nova-iorquino maltrapilhos de semblante apático encostados a um muro.

Os Ramones surgiram em um momento de ressaca no até então efervescente underground norte americano. As bandas que faziam a cabeça da juventude por representar a antítese do mainstream da época, como The Stooges, MC5 e New York Dolls, não sobreviveram ao estilo de vida caótico e deixaram um vazio, um buraco a ser tapado por suas crias. Ouvir discos conceituais estava fora de questão. Nesse sentido, a estreia dos Ramones foi revolucionária ao apostar suas fichas em um reacionarismo estético sonoro e visual com ressalvas. E assim se fez o punk rock.

           Menos é mais: registro de um dos primeiros shows dos Ramones no CBGB

Opa – punk rock e reacionarismo? A princípio, sim. A ideia de Joey, Johnny, Dee Dee e Tommy era essencialmente reacionária: despir o rock’n’roll dos trajes pomposos rotos e focar no espírito original dos primórdios. Menos Pink Floyd, mais Beatles. O aceno ao pop rock inocente dos anos 60, com os apelidos fáceis, o sobrenome em comum e as composições grudentas, foi revolucionário pela forma quase tosca com que o quarteto de Queens abordava essas referências do passado. Joey fazia a melhor impressão de rockstar que podia com seus vocais afetados, Johnny limitava os riffs a uma combinação de três ou quatro acordes distorcidos, Dee Dee e Tommy acompanhavam os colegas de perto, mas sem inventar muito.

O visual do grupo andava de mãos dadas com essa sonoridade básica. Aqueles quatro caras trajando jaquetas de couro, calças rasgadas e tênis surrados – meio que uma versão mais radical da rebeldia sem causa de James Dean – não se pareciam com os típicos rockstars setentistas. Não havia o molde do apelo imagético que a indústria cultural sempre impôs aos artistas modernos; os Ramones eram o que eram. Mesmo seus mestres surgiram já com uma aura de grandiosidade embrionária alimentada pelos empresários e pela mídia: o MC5 era a guerrilha revolucionária sessentista personificada, Iggy Pop um Jim Morrison ainda mais selvagem. Em contrapartida, os colegas do bairro de classe média Queens vinham diretamente das ruas para o show business. A revolução foi geral e é sentida até hoje.

A estreia homônima, que completou 40 anos no mês de abril, é a gênese de praticamente tudo ligado ao underground – e, em menor grau, ao mainstream – dos anos 70 em diante. O fato de uma banda com abordagem calcada na falta de técnica mais apurada dos envolvidos ter conseguido se manter relevante por três décadas subverte os pressupostos adornianos de que os veículos culturais são estritamente baseados no conformismo e na superioridade do artista em relação ao seu público. Os Ramones mostraram que a técnica é detalhe, mero artifício de dominação da indústria cultural, e com isso redefiniram o conceito de rockstar: do deus da guitarra ao garoto tocando no quarto. Para usar um exemplo clássico: se Kurt Cobain decidiu montar uma banda sem ao menos dominar totalmente seu instrumento, foi porque os Ramones existiram.

Os shows curtíssimos e barulhentos dos quatro caras maltrapilhos eram atração principal no CBGB, o ícone maior da contracultura norteamericana, desde 1974 e precisavam ser documentados. As sessões de gravação da antológica estreia levaram exatamente uma semana, algo sem precedentes à época, e foi o suficiente para sacramentar a banda como símbolo do então incipiente movimento punk.

Bastou à praga chegar à Inglaterra, berço do estereótipo da estética punk – roupas rasgadas, moicanos, objetos pontiagudos como acessório etc. – e a forma de expressão a princípio inofensiva dos Ramones foi transformada em um monstro midiático. Nos dois casos a ideia tinha contornos revolucionários, mas a banda de Nova York nunca se preocupou em chocar (curiosidade: todos os membros da formação clássica, especialmente o guitarrista Johnny, eram conservadores). Talvez esteja aí a razão da carreira duradoura dos primeiros; o Sex Pistols, maior expoente do punk inglês, sobreviveu aos trancos e barrancos por três anos. Isso não diminui a relevância das bandas da terra da Rainha, absolutamente, mas serve como reflexão.

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“Fora Dilma”: revolução, só musical

O auge criativo da primeira geração de punks foi breve. Já na virada dos anos 70 para os anos 80 as bandas do CBGB – Television, Dead Boys, Talking Heads, Blondie, Patti Smith e, claro, os Ramones – tomaram rumos distintos, assim como os grupos ingleses. Novamente, a ressaca, curada novamente por novos grupos que representaram uma evolução do punk tradicional. O hardcore punk tirou a contestação aos padrões do plano das ideias: saíram as gravadoras corporativas, os empresários e os shows profissionais; entraram os selos independentes e a autogestão. Em um passado recente, ainda, o pop punk retomou a inocência dos primórdios e foi comercialmente bem sucedido nisso. Dois momentos opostos, uma só raiz.

É devido a essa influência atemporal que ainda faz sentido relembrar os míseros 30 minutos da estreia do quarteto do Queens. Mas só a influência não basta. E as músicas? As catorze músicas do disco são todas peças absolutamente originais e cativantes que refletem a fase mais transicional da vida: a adolescência. Impossível não ser cativado pelo hino à rebelião juvenil de “Blitzkrieg Bop” – a ingênua alusão à tática nazista só aumenta o charme da faixa –, o conto suburbano de “Judy is a Punk”, a love song versão Ramones que é “I Wanna Be Your Boyfriend”, o retrato mais banal o possível do tédio em “Now I Wanna Sniff Some Glue” ou a cômica homenagem aos antigos programas policiais em “Havana Affair”. A produção minimalista, reflexo do curto processo de gravação, mantém o conjunto da obra simples, honesto e atemporal.

Ao longo da prolífica carreira, a família Ramone também passou por transições, conflitos e crises. Nos álbuns posteriores à estreia, a dicotomia entre o pop e o anticomercial se instalou para não abandonar nunca mais o grupo. No fim das contas, eles praticamente se igualaram ao que combatiam: rockstars envoltos em uma aura própria. Mas uma aura de contestação e transgressão que ecoa nos porões do rock’n’roll há 40 anos, e não parece cessar tão cedo.

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