143: o crime de Katy Perry é amar demais

Capa do disco 143 da cantora Katy Perry. Na arte, Katy Perry, uma mulher branca de olhos claros e cabelos escuros, está se projetando para fora de um portal. Ela está vestindo panos translúcidos que censuram o suficiente de seu corpo. Perry olha para cima sendo levada por esse porta, que se trata de uma névoa em formato de coração, que a encobre com cores quentes e frias, como vermelho e azul.
143 estreou em sexto lugar na parada musical estadunidense Billboard Hot 200 (Foto: Capitol Records)

Nathalia Tetzner

Receber de volta todo o amor que já foi perdido pode ser uma experiência avassaladora. Depois de ser rejeitada pela mídia com Witness (2017) e tentar recuperar seu sorriso com Smile (2020), Katy Perry retornou com a proposta mais promissora dos últimos anos de sua carreira. O antecipado 143 surgiu em meio a um rebrand, no mínimo, polêmico. Perry, no sexto álbum de estúdio, arrisca tudo novamente. Dessa vez, em nome de batimentos cardíacos aflorados, o que a induz para um portal que acaba a levando para o lugar comum.

O ‘KP6’, carinhosamente apelidado de ‘KPSex’, nasceu como um disco que Katheryn Elizabeth Hudson sempre quis fazer: completamente dance pop. Nos momentos que antecederam o lançamento, ela nunca prometeu composições completas, letras profundas ou baladas românticas como ela sabe fazer muito bem. A californiana deixou explícito que o parto de sua filha, Daisy Dove Bloom, a colocou nessa nova posição de amar a si mesma e de se sentir confortável em seu corpo como nunca antes. No entanto, o 143 não consegue expressar toda essa potência como deveria.

O amor que filhas podem despertar em suas mães têm uma capacidade transformadora, gerando bons frutos. Com a vinda de Lourdes Maria Ciccone Leon ao mundo, a rainha do pop Madonna emplacou Ray Of Light (1998), uma de suas obras mais aclamadas pela audiência e crítica. Embalada por um amor transcendental e batidas trip hop, ela se mostrou ainda mais radiante e imparável. O mesmo parecia poder acontecer com Katy Perry, que há tempos não refletia uma luz tão intensa. Porém, WOMAN’S WORLD chegou para mostrar o contrário.

Ensaio fotográfico do disco 143 da cantora Katy Perry. Na arte, Katy Perry, uma mulher branca de olhos claros e cabelos escuros, se encara entre portais. Existem duas versões dela na imagem. À esquerda, apenas seu busto aparece saindo do mesmo portal que a encobre na capa do álbum. Já à direita, a câmera a captura a partir dos joelhos, levando sua mão em direção a sua outra persona. Ao fundo, o cenário é cinza.
O título do disco faz alusão ao código numérico que pode representar o sentimento de amar alguém em alguns contextos (Foto: Capitol Records)

O primeiro single da era tem um instrumental digno de um hino pop. Mas o preço pela qualidade foi caro e, analisando em retrospecto, nem compensou. Isso porque, Dr. Luke, produtor de longa data de Perry, retornou a trabalhar com ela após um intervalo de dois discos – justamente os mais rejeitados. Acusado de abuso sexual por outra voz da década de 2010, Kesha, ele não foi condenado, contudo, seu trabalho e índole passaram a ser questionados. Tentando passar despercebido nos créditos de artistas como Doja Cat e Kim Petras, Łukasz Sebastian Gottwald continuou lucrando nos bastidores da Música.

Assim, ao cantar sobre os prazeres de ser mulher, Katy Perry deixa escapar uma certa hipocrisia. Tal questão foi ainda agravada pelo videoclipe de WOMAN’S WORLD, que almeja uma crítica a sexualização feminina, entretanto, é mal executada, deixando margem para interpretações arbitrárias. Algo inusitado, uma vez que, tanto a vocalista quanto a diretora Charlotte Rutherford possuem um catálogo visual impecável. Parece que, durante a era 143, tudo realmente estava fadado à destruição. É incrível como uma equipe, teoricamente fortalecida, conseguiu desmanchar ainda mais a aceitação do público.

Surpreendentemente, o significado por trás do código numérico ‘143’ – alusão à ‘eu te amo’ – ajudou Katy Perry durante esse período conturbado. Em conversas com fãs na plataforma de streaming coletiva, Stationhead, a artista, sempre acessível, compartilhou que costuma encontrar os três números em momentos decisivos de sua vida. Embora, dessa vez, ela possa ter sido enganada pela matemática, a era rendeu bons momentos, como o Prêmio Michael Jackson de Vanguarda, concedido pelo Video Music Awards em homenagem às videografias mais relevantes da indústria musical.

 Ensaio fotográfico do disco 143 da cantora Katy Perry. Na arte, Katy Perry, uma mulher branca de olhos claros e cabelos escuros, olha diretamente para a câmera. Ela usa a mesma vestimenta translúcida que a encobre na capa do álbum. A câmera a captura a partir dos joelhos. O seu cabelo parece estar em movimento. Ao fundo, o cenário é cinza.
O álbum foi lançado no mesmo dia de sua apresentação no festival brasileiro Rock In Rio (Foto: Capitol Records)

Além da premiação, a performance no Rock In Rio, com um coro de 100 mil pessoas cantando “O mundo é das mulheres e nós apenas vivemos nele”, mostrou a relevância contínua de Katy Perry para a cultura pop como um todo. Se o público colocou em xeque o ‘cancelamento’, adentrando o disco, chega a ser atordoante encontrar tantas razões que acabam fundamentando o hate train. As parcerias com 21 Savage e Kim Petras, respectivamente, GIMME GIMME e GORGEOUS, são uma ofensa por serem terrivelmente irritantes e vazias.

O rapper, em especial, parece ter entrado no estúdio de gravação com sono; seus versos soam completamente descartáveis e ele não faz esforço nenhum nas analogias, gerando uma vergonha alheia imensurável ao comparar o seu corpo com o aplicativo de entregas da Amazon. Por outro lado, Petras consegue entregar metáforas ‘engraçadinhas’, mas não passa disso. Ambas as faixas parecem almejar por um flow a lá Dark Horse e E.T, o que é alcançado momentaneamente com ARTIFICIAL, ponto alto do disco.

Ao contrário dos outros feats, JID se encaixa perfeitamente no beat, elevando os vocais mais graves de Perry. As escolhas de palavras continuam básicas, até mesmo deixando escapar uma obsessão nada saudável com o conceito de inteligência artificial, diga-se de passagem. No entanto, são músicas como essa que ajudam os ouvintes a tragarem o 143. I’M HIS, HE’S MINE, parceria com a novata incrivelmente talentosa Doechii também eleva o disco. Terceiro single trabalhado, o ‘MV’ dirigido por Torso é criativo, um destaque maduro e sensual em meio a uma das videografias mais coloridas de todos os tempos.

Fotografia da apresentação da cantora Katy Perry no festival brasileiro Rock In Rio. Na imagem, é possível ver a estrutura do palco e o telão ao fundo. Perry, uma mulher branca de olhos claros e cabelos escuros, está sendo erguida por uma enorme borboleta inflável pendurada no teto do palco. Ela veste um figurino em tons claros. A composição da produção relembra o conceito da capa do disco.
Segundo a Buzzmonitor, Katy Perry foi a headliner do Rock In Rio mais citada nas redes sociais (Foto: Wagner Meier)

Analisando o 143 apenas pela ideia original de concepção, ele também falha. O álbum é sim dance pop, contudo, não traz nada de diferente. Nos últimos anos, Beyoncé e Kylie Minogue conseguiram reinventar o gênero, desenvolvendo projetos que encheram as pistas de dança e revigoraram, com frescor, as batidas energéticas. Katy Perry não tinha necessidade de repetir esses feitos, mas, olhando para a capa do disco, é decepcionante pensar que ela entregou em um portal que acabou a levando para o mesmo lugar de sempre. 

Abusando de “La-da-da-dee” ao longo das 11 faixas, Perry distribui amor enquanto conta os hits nos dedos em 143. Navegando pelas bochechas vermelhas na ‘fofinha’ CRUSH e a incerteza do futuro na estridente demais WONDER, o disco precisa ser ouvido de forma despretensiosa, nada mais. O ‘KP6’ não funciona como deveria, entretanto, demonstra mais uma vez que os ‘katycats’ – como seus fãs são chamados – vão a amar “até o final e repetir”, afinal, passar por mais uma era conturbada com certeza foi uma prova de fogo. 

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