Vitória Lopes Gomez
Nunca esteve tão claro que filmes de animação não são sinônimos de infantilidade. Soul talvez seja o exemplo mais popular e atual disso: o visual é apenas a técnica escolhida para um filme que explora o metafísico e desperta o existencial. Um pouco mais fantasioso, um pouco menos alegórico (ou vice-versa), da Pixar aos Estúdios Ghibli às irreverentes séries americanas, os ‘desenhos’ comportam uma multiplicidade que alcança diferentes faixas etárias. E é em meio a diversidade de narrativas e a crescente predileção por computações gráficas que chega Wolfwalkers, que se destaca pelo visual 2D cada vez mais raro e, desde o seu lançamento no Festival de Cinema de Toronto, aproveita a atenção para encantar todos os públicos.
Na trama, que se passa em 1650, a jovem Robyn Goodfellowe (dublada por Honor Kneafsey) e seu pai Bill (dublado por Sean Bean, o Ned Stark) são recém-chegados na cidade irlandesa Kilkenny. Contratado para extinguir os lobos que vivem na floresta, o pai da menina passa o dia caçando e ela, contrariando as ordens de não entrar na mata, resolve ajudá-lo a completar a tarefa para que os dois possam voltar logo à Inglaterra. Em uma de suas fugas, Robyn se depara com uma matilha e, quando sua líder se transforma em Mebh (dublada por Eva Whitaker), descobre a existência dos wolfwalkers, uma lenda local.
Após o encontro inesperado e passado o estranhamento inicial, as duas rapidamente viram amigas. A curiosa Robyn, excluída e caçoada por ser inglesa em uma vila irlandesa, passa a conviver com a agitada Mebh, que vive isolada na floresta, e as meninas formam uma dupla divertida, principalmente por serem tão diferentes. É com Mebh que Robyn aprende sobre os wolfwalkers: as criaturas, adaptadas do folclore irlandês, são seres humanos comuns, mas, quando dormem, têm sua alma desprendida do corpo físico e assumem a forma de lobos.
A mitologia celta que inspirou e torna o filme tão único é tema recorrente nos trabalhos de Tomm Moore, co-fundador do Cartoon Saloon e diretor ao lado de Ross Stewart. Em suas outras produções, como as indicadas ao Oscar Uma Viagem ao Mundo das Fábulas (O Segredo de Kells, em tradução literal) e A Canção do Oceano, do mesmo estúdio e consideradas parte da trilogia que termina com Wolfwalkers, os seres folclóricos da região, principalmente da Irlanda e da Escócia, são o carro-chefe.
Porém, apesar de a lenda ser uma encantadora abordagem da cultura local e servir como base para a história, a fantasia não é necessariamente o ponto central da narrativa, que passeia por assuntos e aprofunda o ambiente e os personagens. Sem se perder entre as camadas que constrói, o longa cria espaço para tratar do equilíbrio entre o homem e a natureza, a relação com a autoridade e o papel da mulher na sociedade da época, além de contextualizar o cenário da Irlanda no século 17. Sem dúvidas, Wolfwalkers é mais do que só um filme de fantasia para crianças.
Discretamente, mas não tanto, Moore e Will Collins, os responsáveis pelo roteiro, incluíram até referências políticas e históricas reais, para os mais atentos. Na época em que se passa o longa, o país vivia um período de invasão pelos ingleses, liderados por Oliver Cromwell, que expulsaram habitantes locais de suas terras e tomaram o controle. O vilão Lorde Protetor Cromwell, comandante da vila, é uma clara menção ao militar e sua postura também é semelhante: ele associa a “maldade” aos “pagãos”, ao folclore e aos lobos que ele pretende expurgar, um episódio que também aconteceu.
Nenhum dos tópicos ou alusões é destrinchado ou explorado a fundo, mas eles são trazidos como intrínsecos à narrativa, de forma a complementá-la e desenvolver as protagonistas, suas crenças e motivações. Apesar do risco das histórias secundárias, em nenhum momento os desdobramentos parecem superficiais ou corridos: pelo contrário, casam com a obra e formam o todo, sem destoarem ou esquecerem da fantasia que o filme propôs entregar. Afinal, apesar de não ser exclusividade do público mais jovem, a produção foi lançada na categoria infantil do streaming da Apple.
Enquanto na cidade o Lorde Protetor Cromwell prega que os animais são feras perigosas e devem ser dizimados, a amizade com Mebh, que contagia com sua animação e sotaque irlandês viciantes, prova a Robyn que os humanos e a natureza podem viver em harmonia. A nova visão de mundo da inglesa torna-se inevitável quando, durante a noite, ela percebe que foi mordida acidentalmente pela amiga e se transforma em lobo. Se antes ela queria caçar os animais, agora é uma wolfwalker e tem de fugir até do próprio pai.
Quando Robyn, que sequer teve tempo de assimilar seus novos poderes, é perseguida pelos intolerantes habitantes da cidade e acaba se escondendo no castelo de Cromwell, a situação piora: ela descobre que a mãe perdida de Mebh, a líder da matilha, foi capturada e aprisionada pelo Lorde. Aqui, as ilustrações animadas à mão, que podem parecer incomuns para o olho acostumado à computação gráfica das grandes empresas, escancaram seu poder em passar as sensações em Wolfwalkers.
Provando ser mais do que só um grande atrativo, o visual e a estética do filme, frutos da colaboração entre os diretores e outros artistas do estúdio, são fundamentais na construção da narrativa e da mensagem. A cidade e seus habitantes, geométricos e pintados em cores sóbrias, são hostis e opressores, reprimindo Robyn. Já a floresta, onde a menina pode ser ela mesma em todos os sentidos e formas, é desenhada em linhas arredondadas e abstratas, com muitos detalhes e pintada em cores vivas, que tornam o ambiente acolhedor.
Apesar do arco principal tomar um rumo previsível a partir da descoberta, o acontecimento impulsiona o clímax e amplifica o dilema das personagens e das relações. Mebh precisa resgatar a mãe, Robyn tem de enfrentar o pai de uma vez por todas e Bill tem de decidir entre seguir a autoridade repressora ou acolher e ajudar a filha. O caminho sentimental é inescapável – e essencial para parte do público do gênero -, mas não falha e nem cai só no clichê: as escolhas feitas no ápice do conflito, suas consequências e o desfecho do filme verdadeiramente emocionam.
O espectador que não sabia o que esperar pode até escolher com o que prefere se comover ou qual mensagem tirar da obra. As várias camadas interessantes na já interessante premissa de Wolfwalkers, somadas a um visual deslumbrante e uma trilha sonora incrível, tornam a produção um verdadeiro espetáculo, seja para o público infantil, seja para o adulto, que não precisa disfarçar a admiração.
Não por menos, o filme já é o melhor do ano, se considerada a opinião dos críticos: após honrarias de importantes organizações como as Associações de Críticos de Cinema de Los Angeles, Nova Iorque e Boston, a produção é a mais homenageada da temporada. Acumulando reconhecimentos, o longa disputa o Oscar de Melhor Animação, concorrendo com produções de estúdios mandachuva, além de ter sido indicado em outras importantes premiações do cinema, como o Globo de Ouro e o Critics Choice Super Awards. Wolfwalkers não levou os dois últimos, mas que a competição acirrada da Academia faça justiça.