Nathan Nunes
Um dos reality shows mais famosos do canal Food Network é o S.O.S. Restaurante, apresentado pelo chef de cozinha Robert Irvine. Nele, o anfitrião tenta salvar restaurantes em situação crítica, seja financeira, sanitária ou emocional. O grande charme do programa é a possibilidade de imersão no cotidiano da gastronomia, nem sempre tão atrativo e tampouco saudável para os profissionais quanto os pratos de comida são para nós. Felizmente, tudo dá certo ao final de cada episódio e Irvine consegue cumprir sua missão de mudar a rotina dentro desses estabelecimentos, coisa que os trabalhadores da casa de sanduíches The Beef provavelmente sonham desde os minutos iniciais de O Urso.
Tendo Christopher Storer (Bo Burnham: Make Happy) como showrunner, a série, original da Hulu nos Estados Unidos e do Star+ no Brasil, é figurinha carimbada nas premiações do começo desse ano, com projeções até mesmo para o Emmy. Além da indicação na categoria de Melhor Série de Comédia ou Musical, o projeto se destacou principalmente através de seu único membro vitorioso: Jeremy Allen White (Shameless e Homecoming), vencedor do Globo de Ouro e do Critic’s Choice como Melhor Ator em Série de Comédia pelo desempenho como o protagonista Carmy.
Quando seu irmão Mikey (Jon Bernthal, de O Justiceiro) se suicida, o chef de cozinha em frangalhos emocionais é incumbido da tarefa de administrar o restaurante, a contragosto do gerente de longa data Richie (Ebon Moss-Bachrach, de Star Wars: Andor). O que ambos encontram, para o mínimo espanto do primeiro, é uma cozinha caótica e desorganizada, onde os nervos dos cozinheiros estão sempre à flor da pele e as contas nunca saem do vermelho.
Logo à primeira vista, The Bear (no original) já evidencia a tônica técnica que pretende seguir dentro desse ambiente tão bélico. A câmera de Storer e Joanna Calo (Hacks, Bojack Horseman), por exemplo, se movimenta de forma brutal e intensa pelos espaços apertados da cozinha, além de se fechar muito nos closes dos atores e nos planos-detalhe dos alimentos sendo cortados e preparados para as receitas. Enquanto isso, o que embala nossos ouvidos é uma sinfonia tóxica de gritos, xingamentos, panelas e tigelas batendo no chão, entre outras insalubridades. É curioso notar, inclusive, a linha tênue que separa a precisão dos pratos do caos dentro do restaurante, pois, a cada minuto, surgem novos obstáculos e diminui o tempo para resolvê-los.
Contudo, o grande chamariz da série é o desenvolvimento de seus personagens, com três deles se destacando em especial. A primeira é a jovem Sidney, interpretada por Ayo Edebiri (Big Mouth). Desde o instante em que ela entra na cozinha, seu talento e determinação já são notados por Carmy, que não hesita em delegá-la a funções importantes dentro do trabalho, algo que incomoda veteranas como Tina (Liza Colón-Zayas, de In Treatment). Nessa linha, sua história ganha importância e expansão nos cruciais episódios Brigade, no qual ela é encarregada de instaurar o sistema de brigada francesa entre os cozinheiros; e Dogs, em que vemos seus esforços para conquistar o respeito dos demais, incluindo da rival.
Em paralelo à jornada da aspirante, temos o arco narrativo do Richie de Bachrach, um homem que exala forte sentimento de decadência. Ceres, o sexto dos oito episódios da primeira temporada da série, o representa já em seus primeiros minutos de rodagem: começamos ouvindo Mikey contar uma história absurda e engraçada que empolga todos ao seu redor e terminamos com o fracasso de Richie em replicar o sentimento ao contar a mesma história para outra pessoa durante um encontro. O momento é, na superfície, corriqueiro, mas logo se expande para um reflexo das inseguranças do gerente e do peso de ‘ficar para trás’, principalmente quando ele se depara com o crescimento de Sidney.
Essa estratégia de progressão orgânica e bem amarrada, na qual um mero acontecimento repercute em aspectos fundamentais no futuro, e assim avança a história, não se restringe apenas a esse ponto. No mesmo episódio, por exemplo, Sidney desenvolve um prato de risoto que não agrada tanto o gosto de Carmy. A refeição vai parar nas mãos de um freguês qualquer que descobrimos ser um importante crítico gastronômico no sétimo capítulo, Review, quando uma ótima resenha do restaurante é publicada e aumenta absurdamente o número das reservas de pedidos. O que se segue, a partir daí, é a tensão e animosidade da série elevada à enésima potência, conforme o chefe tem um colapso nervoso. Todos os conflitos previamente estabelecidos explodem na frente da câmera, tudo registrado em um único plano sequência a lá Birdman e 1917.
Quando chegamos ao oitavo e último episódio da temporada, Braciole, o texto já começa colocando os personagens contra a parede e os forçando a lidar com os acontecimentos passados, em especial Carmy. No semblante de Jeremy Allen White e nas palavras proferidas em um forte monólogo, vemos um homem completamente em pedaços, que não consegue lidar com seus demônios pessoais. Essa dificuldade particular se relaciona perfeitamente com o título da série, pois o urso em si é uma metáfora para tudo aquilo que não é dito e confrontado pelos personagens. É um obstáculo que os impede de se reconciliar consigo mesmos.
Nesse sentido, a cozinha opera quase como um purgatório para essas pessoas. Um local que suga suas energias, mas também as externaliza quando o resultado é bem feito e claramente afeta a vida de alguém. O chef Irvine entende esse potencial em S.O.S Restaurante e, não à toa, é difícil esquecer de seus esforços enquanto assistimos The Bear. Ele nunca foi mencionado na produção, mas a noção de que vale a pena confrontar diretamente suas angústias e ansiedades para crescer dentro de um meio é notável em ambas as atrações. Aqui, é a culinária, mas, na vida real, pode ser qualquer outra.