Test e Deaf Kids na Casa Orates: o barulho salva

O apocalipse virá de Kombi (Foto: Gabriel Leite Ferreira)

Gabriel Leite Ferreira

Na última sexta, uma Kombi estacionou em frente à Casa Orates. Anteriormente conhecido como Exílio, um dos poucos nichos underground de Bauru passou por reformulação esse ano, mas a proposta continua a mesma: fomentar a cena alternativa da região e inserir a cidade na rota de nomes proeminentes. Por isso a clássica Kombi do Test, que também trouxe o Deaf Kids para perfurar tímpanos bauruenses.

Curioso notar que o line-up da noite foi composto praticamente por bandas diminutas. A primeira delas, a tradicional Autoboneco, tocou em duo: Aran nos vocais e programações e Thiago na guitarra. Parafernália suficiente para o pós-punk/industrial com nuances de Swans e Mayhem, um amálgama versátil e cativante. As imagens exibidas durante o show completaram a atmosfera claustrofóbica daquele que é um dos grupos mais longevos da cena bauruense: são 25 anos de atividade e 22 discos, todos disponíveis aqui.

Autoboneco: tão kvlt que a foto pixelou (Foto: Ana Capello)

A Orates não conta com uma grande infraestrutura, o que não costuma ser um problema exceto em shows de metal. A D.O.S (Dawn of Sickness) também local, assumiu o palco depois da Autoboneco e não decepcionou com seu death metal angustiante. Destaque para os vocais legitimamente desesperados de Luis Felipe e para as canções de andamento mais complexo, um belo convite ao bate-cabeça. Infelizmente, a acústica limitada prejudicou a apresentação nos momentos mais graves, quando a guitarra e o bumbo da bateria se confundiam. Ossos do ofício.

Desde o começo do mês, Test e Deaf Kids passaram por sete estados brasileiros com a No Hope Tour – aliás, um nome no mínimo irônico, visto a crescente repercussão internacional que ambas vem conquistando. Na estrada desde 2010, o Test é formado por João Kombi (ex-Are You God?) no vocal e guitarra e Barata (D.E.R) na bateria. A dupla de São Paulo, capital, ganhou notoriedade por tocar literalmente na rua, na porta de shows grandes, sempre tendo a Kombi como transporte.

D.O.S.: ô, mãe, eu tô doente (Foto: Junior Monteiro)

Oriundos de Volta Redonda (RJ), o Deaf Kids surgiu em 2010 como projeto solo de Douglas Leal. Ao vivo, ele conta com o baixista Angu e o baterista Mariano. Figura já carimbada no underground nacional, o grupo recentemente teve seu disco Configuração do Lamento (2017) lançado no exterior pelo Neurot Recordings, selo dos gigantes do Neurosis, que também os convidou para abrir os shows no Brasil.

As expectativas eram altas – e bastou Douglas ligar seu amplificador e o set de pedais para atendê-las. O último lançamento do trio carioca representou uma nova fase: o hardcore à Discharge dos álbuns anteriores (dois EPs e um disco cheio) divide espaço com passagens noise viajantes que remetem ao próprio Neurosis e, novamente, ao Swans. Se em estúdio a mistura é eficiente, ao vivo ela toma proporções astronômicas, com o perdão do trocadilho.

Deaf Kids no palco: bateu uma onda forte (Foto: Junior Monteiro)

A repetição é a base para Douglas brincar com seus pedais – e dá-lhe loops, ecos e todo e qualquer efeito etéreo. As camadas sonoras vão se sobrepondo de tal modo que seu vocal se transforma em outro instrumento. Não à toa, a maioria dos presentes preferiram assistir parados em vez de partir para o pogo. Não sei se foram 40, 50 ou 60 minutos; mas ao final, quando o trio enveredou por uma jam dignamente setentista com direito a solo de guitarra, a sensação era de pura catarse.

Sem tempo para contemplações, afinal, ainda havia o Test. A exemplo da Autoboneco, o duo mescla influências de um mesmo mundo: os blast beats do grindcore, os riffs graves e palhetados do death metal e os vocais berrados do black metalEspécies (2015), lançamento mais recente, reveste esses elementos com uma produção suja e barulhenta, um contraponto ao som mais seco de Arabe Macabre (2012). No palco, a crueza sem rodeios dita as regras: João Kombi toca com uma guitarra de quatro cordas e o kit de bateria de Barata não é dos maiores.

Test: a dupla dinâmica (Foto: Nilo Vieira)

Detalhes, apenas – a banda reverte supostas limitações técnicas com uma energia absurda. João entrega riffs certeiros e tão graves que sequer se sente falta do baixo. Barata, por sua vez, mereceria um texto à parte: um dos bateristas mais rápidos de que se tem notícia, ele simplesmente esmigalha seu instrumento alternando blast beats à velocidade da luz e andamentos lentos com naturalidade e precisão absurdas. Só vendo pra crer. O clima de improvisação do show do Deaf Kids se repetiu: em certo ponto, Douglas e Mariano subiram no canto do palco e adicionaram pedais e percussão à porradaria seca do Test. De novo, a catarse.

Se a noite de sexta-feira ensinou algo, foi que por vezes não é preciso uma formação grande pra entregar um som apocalíptico; na verdade, menos de quatro pessoas com sangue no olho bastam. E, enquanto houver isso, sempre haverá esperança.

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