Gabriel Gomes Santana
Senna: O Brasileiro, o Herói, o Campeão, produção dirigida por Asif Kapadia e vencedora do prêmio BAFTA de Melhor Documentário em 2010, narra sua formação e trajetória ao longo da carreira no automobilismo. Um dos motivos para a obra ter alcançado grande repercussão entre o público, se deve ao fato de que ela soube trabalhar com o principal legado deixado por Senna: a emoção. Sentimento contagiante de um atleta que reconhecia o tamanho de seu potencial e inspirou a todos com o verdadeiro significado da palavra determinação.
Através das filmagens dos eventos esportivos e com um grande compilado de vídeos e imagens pessoais, a obra nos convida a conhecer de perto sua difícil e majestosa caminhada profissional. A paixão de Senna começa na infância quando, aos quatro anos de idade, seu pai lhe presenteia com seu primeiro kart. Ninguém imaginava que o equipamento improvisado com um motor de cortador de grama, anos mais tarde revelaria uma das maiores figuras do automobilismo mundial.
Desde as corridas de kart do fim da década de 1960 até sua primeira conquista em 1973 em Interlagos, Senna cria um vínculo único e nunca antes visto com o clima chuvoso. Sua maior dificuldade era ter bons desempenhos na chuva. Perfeccionista como era, e por ironia do destino, as pistas molhadas passaram a favorecê-lo. O garoto paulistano é impetuoso e decide migrar para categorias mais avançadas do esporte, chegando à Fórmula 1 em 1984.
Cada etapa de sua formação é descrita ao longo do documentário por personagens emblemáticos da Fórmula 1, amigos, familiares e é claro depoimentos do próprio protagonista. É unanimidade dentro do esporte que os feitos alcançados por Senna são espetaculares, não somente pelo número de títulos, mas principalmente pelas condições com as quais teria ele alcançado. Acumular três títulos mundiais é uma tarefa difícil, mas atualmente Lewis Hamilton lidera com o dobro de conquistas. Michael Schumacher sendo o maior recordista do esporte, com sete títulos, possivelmente terá sua marca ultrapassada por Hamilton ainda no fim de 2020.
Mas diferentemente de ambos, Senna nunca pilotou uma Ferrari, nem teve a alta tecnologia da Mercedes a seu favor. A genialidade do brasileiro se destaca através de carros pesados, poucos recursos e condições climáticas desfavoráveis. Estrear na elite do automobilismo, em segundo lugar no GP de Mônaco (o mais emblemático e difícil circuito da categoria) competindo ao lado de Nikki Lauda, Nelson Piquet, Nigel Mansell e Alan Proust com um carro da Toleman, não é para qualquer um. Seria como colocar um time recém chegado da série B para alcançar a vice liderança do Brasileirão. A rivalidade de Senna com Proust dentro da McLaren e o icônico GP de Interlagos de 1991 são episódios muito comentados no documentário.
De maneira geral, eu poderia mencionar suas 162 corridas, 80 marcas no pódio, 65 pole positions, 41 vitórias e 19 voltas mais rápidas da categoria. Mas escrever sobre Ayrton Senna é ir além de seu destaque nas pistas molhadas, suas vitórias, recordes e ultrapassagens espetaculares no cenário do automobilismo mundial. Senna representa até hoje o brilho uma torcida que anseia pelo sentimento de vitoria, uma nação brasileira que sonha com o pódio. Muitas gerações ainda acordam aos domingos com uma sensação estranha de vazio e de perda. Ayrton Senna da Silva, na verdade é Ayrton Senna do Brasil, mas não pelo simples fato de ter nascido no país. Ele carregava uma energia ímpar, sua garra para lidar com os obstáculos na pista, de certa forma se espelhava na maneira que o povo brasileiro encontra para enfrentar os obstáculos da vida.
Ser como Senna está também na capacidade de atingir grandes feitos com poucos recursos, apostar na incerteza e contrariar estatísticas. A verdadeira essência de uma figura que reconheceu seu potencial, desafiando seus limites para alcançar seus objetivos. Sempre com honras e valores, Senna nunca deixou de lado sua preocupação com as questões sociais. Preocupado com o avanço da desigualdade social, ele fez grandes doações e até fundou sua própria ONG. Muito além de seu posicionamento, desejo ou preferência, Senna estava ao lado do progresso de uma mesma torcida: o Brasil.
Quando Senna sorria, parte de sua alegria contagiava uma massa com um orgulho nacional de pertencimento. Um país que sonhava com uma democracia, com uma nova constituição e com novos representantes. Talvez sua perda, tenha se misturado com o mesmo sentimento de morte da esperança. E agora, quem são nossos exemplos? Nossos espelhos estão apagados? Nossa tentativa democrática não teve sucesso? Infelizmente, vivemos um momento muito distante de qualquer comemoração. Talvez pelo fato de que sofremos a carência de boas identidades, atletas marcantes ou ainda heróis nacionais. Não acredito muito nesta história de heróis, mas se o reverenciamos nas telas de cinema por que não valorizar grandes personas que tanto nos fazem acreditar que há esperança e que é legal ver um povo feliz?
Senna: O Brasileiro, o Herói, o Campeão, de maneira geral, só não é perfeito porque não conta com as brilhantes narrações de Galvão Bueno, uma vez que ele é um dos grandes responsáveis por levar ao público brasileiro a emoção de acompanhar um esporte que não era tão popularizado no país. Fora isso, a produção consegue cumprir sua missão de trazer informação aliada à emoção e nostalgia de um grande campeão.
Os esportes, em geral, são ferramentas importantíssimas de identidade cultural. Um espelho que reflete nossa sociedade através de seus mais diversos prismas. Não é que todos os ídolos estejam apagados, nem que todas as vozes estejam caladas, mas o terror da falta de sensibilidade, do negacionismo, da intolerância e da violência ecoa mais alto na ausência de posicionamento de figuras públicas. Ídolos, como Ayrton Senna, que sentem orgulho de seu povo e que apesar de todos os problemas, demonstram respeito por seu país.