Anna Clara Leandro Candido
Madam C. J. Walker foi a primeira mulher negra a se tornar milionária por conta própria na história dos Estados Unidos. Filha de escravos, nascida poucos anos depois da abolição e mãe aos 18 anos, Sarah Breedlove – nome de nascença da empresária – fez sucesso ao vender produtos para cabelos negros numa época onde o racismo e o machismo ditavam o cotidiano de uma população.
Essa tão aclamada e importante figura de empoderamento negro e feminino só foi ganhar uma adaptação de sua história esse ano pela Netflix. Produzida por DeMane Davis, Eric Oberland e Lena Cordina, a minissérie Self Made, que ganhou o título nacional A Vida e a História de Madam C. J. Walker, chegou para levar a história de Sarah ao mundo televisivo. A produção foca em sua jornada empreendedora e utiliza de vários recursos do drama para trazer uma linda história de superação e luta, atando-se a alguns pontos verdadeiros da obra original, mas deixando muitos outros de lado.
A história começa com Sarah Breedlove (Octavia Spencer) lutando contra a queda total de seu cabelo devido a alergias, além do estresse causado por sua vida como lavadeira e dos abusos que sofria do marido. Até que um dia, Addie (Carmen Ejogo) bate à sua porta oferecendo um produto capilar que resolveria o problema. Ela faz de Sarah sua cliente, mas não a permite ser revendedora, como é o desejo da personagem. Madam decide então pegar o produto, modificá-lo um pouco e vender, tornando-o um sucesso e iniciando uma rivalidade entre as duas personagens.
Os conflitos entre Madam C. J. Walker e Annie Malone, inspiração original para personagem Addie, realmente existiram, mas limitaram-se a acusações na imprensa. Self Made pega esses acontecimentos e os transformam em uma batalha entre arqui-inimigas apenas para adicionar uma dramaticidade à narrativa e usá-la como combustível. Construir um fim no qual uma das personagens sai vitoriosa enquanto outra acaba em derrota corrobora por passar uma mensagem negativa e destruir a oportunidade de representar a sororidade tão importante e necessária entre as mulheres na luta por direitos iguais. Na realidade, ambas as empresárias construíram seus próprios impérios e influenciaram a história dos Estados Unidos. A verdadeira versão teria impactado o público tanto quanto uma narrativa em prol dos clichês dramáticos, ao mesmo tempo em que se manteria fiel à realidade.
O roteiro de Self Made infelizmente não ajuda a honrar o legado de Madam C. J. Walker e cria uma narrativa picotada e confusa. As transições temporais são abruptas e muitas vezes não apresentam a contextualização do que teria acontecido anteriormente. Além disso, a incorporação forçada de músicas e temas atuais de mais para a época na qual a série se passa dificulta a relação entre espectador e ambientação. A ânsia por audiência prejudicou o potencial que a série tinha em contar com qualidade a história de uma das mulheres mais importantes da América do Norte.
A série é inspirada no livro On Her Own Ground de A’lelia Bundles, descendente direta de Sarah. E, por mais que abuse da licença poética atribuída às adaptações, traz algumas mensagens importantes e inspiradoras da vida de C. J. Walker. O drama e ar de novela transmitidos pela obra atraem um público muito grande e ajuda, de certa forma, a pôr em debate alguns tópicos dos quais esses espectadores podem não estar familiarizados. Levando também aqueles que não conheciam a história de Madam C. J. Walker a procurar mais informações sobre ela.
Um dos assuntos abordados pela obra é o machismo. Em uma época de segregação racial e sexismo, ter uma mulher negra e empoderada criando sua própria empresa de cosméticos, contratando milhares de funcionárias, capacitando mães e famílias para uma vida melhor e apoiando instituições escolares para negros era impensável. Mas, Madam C. J. Walker fez tudo isso e mais.
Em uma das cenas mais icônicas e autênticas de Self Made, Sarah se faz ouvir durante uma reunião exclusiva para homens e fala sobre sua empresa e projetos, luta pelo que acredita e, mesmo assim, é rejeitada e desacreditada. A cena retrata a infeliz realidade vivida por mulheres negras que se impõem em busca de oportunidades dentro de uma sociedade sexista e injusta. Mas, o fato da protagonista não se abalar, seguir em frente com seus sonhos e construir um império da beleza retrata a mais importante mensagem da vida de C. J. Walker e traz representatividade à obra.
Claro, o impacto dessa e de outras cenas não seriam o mesmo sem Octavia Spencer. A atriz brilhou tanto no papel que este ano concorre ao Emmy 2020 na categoria de Melhor Atriz de Minissérie ou Filme para TV por sua performance como Madam C. J. Walker. Dona de um Oscar pelo filme Histórias Cruzadas (2011), Octavia é a primeira atriz negra a receber duas indicações consecutivas, uma por Estrelas Além do Tempo (2016) e outra por A Forma da Água (2017). A atriz tem todo o talento e currículo para ser umas das competidoras mais promissoras da categoria. O espírito de luta e força que a história de Sarah Breedlove apresenta são incorporadas profundamente por Octavia e transmitidas através de uma atuação impecável da atriz.
Self Made é uma obra que recebeu a função de transmitir a história da primeira mulher negra a ficar milionária por conta própria, símbolo de grande força e empoderamento nos Estados Unidos, mas não conseguiu honrar tamanho legado. É uma boa série para iniciar-se na história da Madam C. J. Walker. Contudo, recomendo que não se apegue apenas a ela e busque saber mais sobre a vida dessa mulher guerreira que marcou a humanidade.