Flora Vieira
Pluto, anime distribuído pela Netflix e produzido pelo Studio M2, é a adaptação do mangá homônimo escrito e ilustrado por Naoki Urasawa, mangaká responsável também por outros sucessos, como Monster e 20th Century Boys. O mangá e sua adaptação escolhem recontar The Greatest Robot On Earth, uma das várias histórias de Astro Boy, escrita e publicada pelo lendário Osamu Tezuka em 1965. No anime, nós acompanhamos Gesicht, um robô detetive que passa a investigar assassinatos de robôs e cientistas que, de alguma forma, estão interligados a um conflito geopolítico global ocorrido anos antes.
Para falar sobre Pluto, é interessante entender a obra que ele adapta. Na história de Tezuka, os sete robôs com a tecnologia mais avançada do mundo são caçados um a um por Pluto, um robô criado por um sultão, que o cria para que ele se torne o Rei dos Robôs e seja decretado superior aos outros. A história de Urasawa, escrita entre 2003 e 2009, acolhe a base da história original e constrói uma trama mais complexa, explorando de forma ainda mais profunda os temas já pincelados pela obra. Outra mudança importante é a de protagonismo: enquanto na história da década de 1960 ele é de Astro Boy, em Pluto, ele é do robô detetive.
A alteração de personagem principal permite a Naoki Urasawa o desenvolvimento de uma trama de mistério, que evolui conforme acompanhamos o desenrolar da investigação, em conjunto com os dilemas pessoais do protagonista e visões estranhas que o perturbam. Enquanto The Greatest Robot On Earth tem maior foco nas lutas e na ideia clássica de derrotar o vilão principal, as oito horas de Pluto permitem que a série trabalhe mais com as nuances e pormenores daquele universo, em que robôs têm direitos quase que equivalentes aos dos seres humanos, sentem emoções e são tão capazes de atrocidades quanto nós.
Outra mudança relevante se deve ao contexto histórico de publicação do mangá. Naquele momento, acontecia no Oriente Médio a Guerra ao Terror, promovida pelos Estados Unidos em resposta aos ataques do 11 de setembro de 2001: acusado falsamente de possuir armas nucleares, o Iraque foi sumariamente atacado pelo país, que buscava por mais influência e controle na região. Na história de Urasawa, a Pérsia, comandada pelo ditador Darius XIV, é acusada pelos Estados Unidos da Trácia de possuir um robô super-inteligente de destruição em massa, o que leva ao 39º Conflito da Ásia Central, um massacre do povo persa perpetrado por robôs, incluindo os sete mais fortes e inteligentes do mundo, com a exceção do pacifista Épsilon.
Por meio dos sete robôs somos apresentados à humanidade que os cerca. Cada um deles tem características específicas que os definem, como Gesicht, o robô alemão, que é explorado no trabalho e sofre com consequências equivalentes às de um burnout. Outro exemplo é Atom, o robô japonês (o Astro Boy da história original), que tem a inteligência artificial mais avançada daquele universo e lida com a complexidade das suas emoções. Épsilon, o robô australiano e um dos mais interessantes da obra, cuida de órfãos do 39º Conflito, em seu próprio orfanato. Todos eles são alvos de Pluto, movido por vingança – porque participaram ativamente no genocídio persa.
A similaridade entre inteligências artificiais e seres humanos não é um algo novo da ficção, trabalhado antes mesmo de Eu, Robô (1950), escrito por Isaac Asimov. Tampouco são novidades no gênero temas como o ciclo de ódio ou a natureza violenta da humanidade. O que torna Pluto único, e diferente também da obra original, é a forma com que esses assuntos se entrelaçam e o quanto os dilemas de cada um dos personagens se conecta com a história, permitindo um olhar por vezes frio, mas contemplativo e profundo sobre a verdadeira origem do ódio e como é possível lidar com ele de forma mais saudável em busca da paz. A série é delicada e terna em mostrar, na perspectiva dos robôs, essa possibilidade, enquanto os seres humanos da narrativa são muitas vezes mais desprovidos, ironicamente, de humanidade.
Enquanto Pluto triunfa na apresentação dos detalhes e na construção de mundo, seus dois episódios finais apresentam muitos problemas de ritmo: não há tempo suficiente para desatar os nós importantes da trama. Decisões são tomadas de forma muito abrupta e sem explicação, principalmente envolvendo um personagem apresentado pouco antes do fim da história, o robô ursinho de pelúcia Teddy Roosevelt, que torna as coisas mais confusas e mais clichês.
Ainda assim, BORA, um dos elementos centrais que circunda a trama até o seu final, é a perfeita representação do ódio acumulado e gerado pelo genocídio, e a decisão de fazê-lo tentar algo maior, em vez da destruição dos Estados Unidos da Trácia, por exemplo, é metaforicamente inteligente e interessante porque não cede ao erro de transformar o país em vítima no final da história. A única responsável e também vítima do ciclo do ódio é a própria humanidade, e ainda mais irônico é que o seu salvador seja justamente um robô, que renunciou ao ódio e se sacrificou para que o ser humano não fosse destruído.
Pluto é plural, complexo e, muitas vezes, óbvio em seus subtextos, mas isso não é um problema. Personagens cativantes, animação lindíssima e subtramas de fazer chorar são a especialidade dessa história, que constrói uma distopia quase perfeita, capaz de te fazer pensar por semanas nas injustiças e fragilidades do mundo real. Na ficção, somos salvos por robôs. Aqui, a humanidade tem o desafio de se salvar, antes que essas injustiças matem ainda mais inocentes em nome do poder de poucos e do sofrimento de muitos. Pluto é, afinal, um ensaio sobre o fracasso da humanidade em salvar a si mesma.