Vitor Evangelista
O ano era 2018. A elite de Hollywood se reunia no Dolby Theatre para a maior cerimônia do ano. Vestidos glamourosos, poses para fotos e estatuetas douradas, aquela noite era só sobre isso. Então, sobe ao palco Frances McDormand. Esbaforida, enérgica, com a cabeça à mil, ela agradece solenemente ao amor do marido e do filho, agradece o trabalho do diretor. Ela coloca seu prêmio no chão e pede para todas as mulheres indicadas se levantarem e faz um discurso atemporal sobre oportunidades no mercado de trabalho, ela cita o termo ‘inclusion rider’, que estourou em buscas poucas horas depois. 3 anos mais tarde, Nomadland chega para provar que Frances não brinca em serviço.
À época de sua vitória por Três Anúncios para um Crime, a atriz já estava com os direitos de adaptação de Nomadland comprados. O cerne da história veio pelas palavras da jornalista Jessica Bruder, que usou o gênero da não-ficção para explorar esse estilo de vida e seus personagens reais. Ela passou um período habitando as comunidades, se locomovendo numa van e conheceu as entranhas e a sensibilidade daqueles indivíduos. Frances se interessou por contar aquela memória recente das feridas estadunidenses, mas ainda buscava a visão adequada para tal.
No Festival de Toronto, em 2017, Frances topou com a exibição de The Rider, um drama indie de uma diretora chinesa usando performances de atores não treinados. Essa proeminente cineasta era Chloé Zhao. Sua destreza e carinho pela arte de contar histórias foram chamarizes para McDormand, que não demorou a oferecer Nomadland para Zhao imprimir sua visão. O casamento deu tão certo que a diretora assumiu também o roteiro, a montagem e assinou como produtora executiva, ao lado da própria Frances, a protagonista da história.
O livro base de Nomadland segue Linda May, uma nômade que vive de empregos temporários depois de perder suas economias na crise de 2008. Na hora da adaptação, Chloé Zhao inseriu Fern, papel da vida de Frances McDormand, entre pessoas reais. Então, tanto Linda May, quanto Swankie e Bob Wells (um guru desse lifestyle do YouTube), interpretam a si mesmos no longa. Assistir Nomadland é quase como acompanhar uma atriz estudando para seu futuro papel. A Fern de McDormand é calma, terna, resiliente e uma exímia ouvinte. A câmera a observa com ternura, seus olhos cansados mas nunca desesperançosos, suas microrreações e o lema de vida que em momento algum soa rancoroso.
Assistimos duas protagonistas tomarem conta das duas horas de exibição. A primeira delas é de carne e osso, tem sessenta anos e mora numa van super equipada. Ela trabalha na Amazon, empacota encomendas, monta hambúrgueres em um restaurante fast food e também lava banheiro de rodoviárias. Tudo isso numa América do Norte que, anos antes, estampava com virilidade as propagandas do sonho americano. Nos Estados Unidos, você pode tudo! Então, como diabos, uma idosa precisa sobreviver no ecossistema terroso das montanhas do país?
A segunda protagonista do filme é invisível, uma fantasma no meio das elegantes paisagens capturadas por Joshua James Richards, esposo de Zhao. A visão de mundo da diretora, que acaba tomando total controle de Nomadland, é companheira de Fern. A maneira como Zhao escreve, como escalou seu elenco sem grandes nomes da indústria, e os respiros solenes que emprega na montagem de Nomadland gritam silenciosamente todo seu talento quando o assunto é a sutileza no brutal.
Chloé Zhao saiu da China para ampliar seus horizontes e trabalhar com mais liberdade: isso quer dizer que o sonho americano funcionou para ela? Nomadland não nos responde, agride ou culpabiliza. A produção da Searchlight (descanse em paz, Fox), sob o comando da Disney, é quase camuflada. Vilanizar uma enorme companhia monstruosa como a Amazon é mais palpável que culpar o sistema capitalista ou as escolhas políticas que engoliram toda uma classe social na crise econômica e não se preocupou em remendar qualquer rombo.
Chloé Zhao foge de fazer um filme previsível. Ela denota um pragmatismo ético de não emocionar a memória. Fern recusa adotar um cãozinho e Nomadland nos mostra logo de cara que não é esse tipo de filme. De fato, a obra tem um tato inimaginável, ainda mais para uma diretora em seu terceiro longa, de não dizer, e sim mostrar. O texto adaptado da obra jornalística constrói e nos encaminha a situações muito mundanas da rotina daquele grupo de pessoas, e são os pequenos gestos e posicionamentos que explicitam ao público a índole de quem estamos assistindo.
E, considerando que, com duas exceções, o elenco todo é formado por atores não-treinados interpretando a eles mesmos, a diretora extrai ouro, diamante e vibranium do material a que tem acesso. O efeito desse tour-de-force veio na aclamação do filme em todos os campos imagináveis. Chloé Zhao se tornou a pessoa mais premiada numa temporada, sendo reconhecida como produtora, diretora, montadora e roteirista. Nomadland se tornou o primeiro filme na história a ganhar o Leão de Ouro em Veneza e o Prêmio do Público em Toronto.
O burburinho resultou num favoritismo de Nomadland na corrida da temporada de premiações. Chloé Zhao tem feito história nos primeiros meses de 2021, e a tendência é que o efeito não pare por agora. O filme é unanimidade em listas de indicados a troféus dourados. No Oscar 2021, foram 6 nomeações. Zhao concorre em quatro delas: Melhor Filme, Direção, Roteiro Adaptado e Montagem.
McDormand está no páreo por sua encarnação messiânica de Fern em Melhor Atriz, além de ser uma das produtoras do filme. A última indicação (Melhor Fotografia) ficou ainda na residência Zhao, com seu marido e diretor de fotografia, Joshua James Richards, reconhecido pelo olho ávido na hora de enquadrar a solidão das montanhas, casada aos sentimentos conflituosos de Fern. McDormand canaliza inspirações reais e se transforma numa amálgama não clichê nem pejorativa dos personagens que a cercam.
Nenhuma dessas menções é gratuita. Nomadland abraça o Cinema e usa todas suas especificidades para contar essa crônica de dor e afeto. É um cavalo de pau no hall hollywoodiano. Chloé Zhao não filma ou dirige da maneira que o faz para ostentar a própria figura. Ela não recria sets quarentistas ou grava sequências emocionalmente covardes em tribunais. O trabalho da artista, ultrapassando as barreiras de ser apenas diretora, produtora, roteirista ou montadora, constrói um filme porque sente que ele é necessário, reconhecendo seu trabalho de reflexão e não de adulação.
“A memória aliena o passado”, é o que diz Bob Wells sobre as lamentações de Fern, perto do desfecho de Nomadland. Por mais livre, ou solitária, que seja, a mulher ainda se prende ao passado e às escolhas que deixou de fazer. Chloé Zhao é enfática quando conclui sua obra-prima sem uma ‘necessária’ conclusão. “Nos vemos na estrada”, repetem os nômades um para o outro. Nada é permanente demais ou passageiro de menos. Nomadland sabe encontrar o meio do caminho entre dois: é memorável o suficiente para permanecer conosco, mas não toma espaço de outras lembranças. É o filme certo para o momento certo, e Zhao tem total ciência disso, dedicando a obra àqueles que já se foram.