Se o CBGB foi o grande templo da contracultura americana nos anos 70, sem o Television seria apenas um clube de música country em meio à pior vizinhança de Manhattan, como costumava ser antes de Tom Verlaine, Richard Lloyd e seu empresário Terry Ork convencerem o dono do local a liberar uma noite para a banda.
O mito começa com dois jovens da pequena Wilmington, em Delaware, Tom Miller e Richard Meyers fugidos da escola em direção a Nova York dos poetas beat. Depois de serem capturados na primeira tentativa, enquanto ateavam fogo em um campo no Alabama, conseguiram chegar à cidade.
O primeiro passo foi trocarem os sobrenomes, seguindo o exemplo de Dylan, indo de Miller e Meyers para Verlaine e Hell, em homenagem aos simbolistas franceses. Os personagens estavam criados. Entre empregos em livrarias e drogas psicodélicas, os dois davam seus primeiros passos na cena sob a alcunha Neon Boys.
Antes mesmo da fama, ou de se chamar Television, a banda já se mostrava influente. Na audição para um guitarrista extra, dois nomes gigantescos, mas até então desconhecidos, participaram: Dee Dee Ramone e Chris Stein, futuro fundador do Blondie, ambos rejeitados. Esse processo marcou o fim dos Neon Boys.
“We tried to show Dee Dee a song and he was just dying. He would just play bar chords, because that’s all he knew. You only need one finger to play a bar chord. And we’d tell him, “Okay, this is in C.” And he’d start playing, and we’d say, “C.” And he’d say, “Oh! Oh!” And just start playing something else. It was total trial and error. And we’d say, “No. No. No, man; C!”
Richard Hell, em “Please Kill Me”
A coisa só começou a ir para frente com a entrada Richard Lloyd, garoto de programa, egresso de hospícios, colega de quarto de Terry Ork e um exímio guitarrista desde a infância. Era o começo do Television, já como o projeto Warholiano nos moldes do Velvet Underground envisionado por Ork, ex-assistente nos filmes do artista.
Em seus primeiros shows, já no CBGB, o rock de alusões cinquentistas que usava poucos instrumentos, de sonoridade minimalista, a contraposição ao prog dominante do período, conquistou o carinho da poetisa Patti Smith.
Um breve relacionamento entre Smith e Verlaine, descrito por ela como portador de uma beleza Schieliana, e uma série de datas juntos consolidaram o Television como o futuro da cena novaiorquina, mas Marquee Moon ainda estava distante.
A primeira tentativa de gravar o álbum se deu sob o comando de Brian Eno, ex-Roxy Music. Apesar do status lendários dessas demos, restritas a bootlegs, o resultado final não agradou os membros da banda, que consideraram a sonoridade deturpada. Eno entraria para a história produzindo a trilogia de Berlim, de David Bowie, além da discografia dos contemporâneos do Talking Heads. O Television voltou aos shows no underground de Manhattan.
Em 1975, a tensão interna entre Tom Verlaine e Richard Hell aumentou, e Hell acabou saindo da banda. Richard iria então para o Heartbreakers e posteriormente a carreira solo, com os Voidoids. Seu estilo pessoal de roupas rasgadas e customizadas chamou a atenção de Malcolm Mclaren, então empresário do New York Dolls, que levou essa estética para o Reino Unido, dando origem aos Sex Pistols. Um dos primeiros pedido de McLaren à banda foi uma versão de “Blank Generation”, canção de Hell composta originalmente para o Television. A versão, chamada “Pretty Vacant”, acabou popularizando o Pistols e sua estética.
O substituto de Hell foi Fred Smith, então baixista do Blondie, grupo de menor expressão que costumava abrir os shows do Television. Em Please Kill Me, Debbie Harry, vocalista do Blondie, comenta essa mudança:
Fred Smith fucking quit Blondie. I was pissed. I was pissed at all of them-all of Television, all of the Patti Smith Group, and Patti and Fred. I was pissed at Patti because she talked Fred into joining Television. Boy, did he make a mistake. Ha ha ha.
Debbie Harry, também em “Please Kill Me”
A entrada de Smith deu força à banda. O Television continuava aclamado como o futuro do rock e a CBGB continuava a ganhar fama. De um bar de alcoolátras, agora Dylan, Lou Reed e os poetas beats eram frequentadores constantes. Novas bandas como Blondie, Ramones e Talking Heads, inspiradas pelo próprio Television começavam a ganhar seu espaço.
O debut “Marquee Moon” chegou só em 1977. Instantaneamente aclamado pela crítica, teve a performance comercial foi obscurecida pela popularidade do punk britânico e de grupos como Ramones, ironicamente ambos derivados da inovação de Verlaine e seus companheiros.
Marquee Moon é, sem exageros, um dos maiores discos de todos os tempos. Ainda que encaixados no punk do período, criado por eles mesmos, pouco tem em comum com os contemporâneos. Em vez de composições rápidas de três notas, os duelos intricados entre as guitarras de Lloyd e Verlaine, onde a separação entre base e melodia é impossível, já que as duas se alternam e completam formando paisagens sonoras. Os gritos anarquistas tipicamente associados ao gênero aqui são substituídos por simbolismos crípticos centrados em um ambiente urbano e declamados por Tom Verlaine. Até as drogas se tornam uma experiência poética:
You know it’s all like some new kind of drug / my senses are sharp and my hands are like gloves / Broadway looks so medieval, it seems to flap like little pages / I fell sideways laughing, with a friend from many stages.
“Venus de Milo”
O melhor exemplo da genialidade está na própria faixa título. Em seus 10 minutos de duração, Verlaine fala sobre relâmpagos, chuva e escuridões dobradas, sobre Cadillacs e cemitérios e o segredo da felicidade, culminando então em uma batalha entre Lloyd e Verlaine que deixa qualquer outro clássico do rock para trás. Dá pra sentir as faíscas. Não é o exibicionismo técnico vazio do rock progressivo, tudo aqui é repleto de emoção, o virtuosismo do Blues e do Jazz é aplicado ao niilismo das ruas devastadas de Manhattan. Logo antes do fim Verlaine volta ao refrão, para comprovar a unicidade da faixa, gravada em uma única tentativa. É a consolidação de toda a estética surgida de Cage ou Velvet Underground. É a reinvenção da música com guitarras.
O resto do mundo levaria alguns anos para alcançar o mesmo nível. Junto do punk, o Television já dava bases ao pós-punk e à new wave que viriam posteriormente. Ainda assim, não foi suficiente. Enquanto Blondie, Ramones e Talking Heads, surgidos da cena criada por Hell, Lloyd e Verlaine, se consagraram como grandes nomes do mainstream, o Television lançou mais um álbum, Adventure antes de acabar e voltar à relativa obscuridade, ofuscado por suas próprias crias. O próprio CBGB se transformaria em signo amplamente reconhecível pela população comum, enquanto Marquee Moon ocupa seu nicho próprio exclusivo entre conhecedores, junto de Horses, de Patti Smith, disco onde Verlaine também participa.
40 anos depois de seu lançamento, Marquee Moon ainda é o marco que separa os entendedores dos que só gostam de música. De U2 a Smiths a REM a Pixies a Sonic Youth, ninguém capaz de segurar uma guitarra escapou da influência, direta ou indireta. Is This It, o disco do Strokes que definiu os anos 2000, deve todo seu sucesso aos inovadores novaiorquinos originais. Assim como o relâmpago que atinge a si mesmo, Marquee Moon foi um evento único e raro, de extrema beleza poética, que poucos tem a chance de presenciar.